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Published on Mar 21,2019
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Home Explore REVISTA CCI NUMERO 1
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1 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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3 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CCI CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES

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4 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ficha técnica Director Mário Avelar Coordenação Maria de Jesus Ventura Grafismo Nuno Lemos Conselho Editorial Antonio Franco Dominguez Haden Guest Howard Wolf István Rákóczi Susani França Viorica Patea Vítor K. Mendes Conselho Redatorial Alfredo Teixeira Cristiana Vasconcelos Rodrigues Fátima Freitas Morna Jeffrey Scott Childs José Bértolo Fundação D. Luís I, F.P. Conselho Diretivo Presidente Salvato Teles de Menezes Vogais Fernando Garcia Filipa Melo Diretor Executivo Pedro Vinagre Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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5 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO North South, East West Ted Witek - Hilda Yasseri BRISAS Escritores e a sala de cinema Raquel Morais Reviver o futuro em Manderley: Ana Teresa Pereira, Alfred Hitchcock e Daphne du Maurier Amândio Reis Muriel, ou da Poesia - O reencontro como desencontro necessário – Ruy Belo e o cinema Teresa Bartolomei AURORAS ESTÉTICAS Jackie in the Kingdom of Camelot Mário Avelar ABSTRACTS Resumos índice 13 17 31 43 69 79 93 PORTFÓLIO A.H. João Madureira Breve périplo pel’ A Cidade das Palavras Maria do Rosário Monteiro Ana Hatherly e a escrita em cinema Elisabete Marques Anagregoriana Ana Marques Gastão POÉTICAS I Mário-Henrique Leiria: breves dados biográficos. A importância do meio familiar João Abel da Fonseca POÉTICAS II Count no man happy Howard Wolf ARTE DO TEMPO José Manuel Tengarrinha e a Civilização do Jornal em Portugal: A Nova História da Imprensa Portuguesa - Das Origens a 1865 Ana Paula Menino Avelar 111 117 123 141 165 177

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7 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS A secção Poéticas II apresenta textos inéditos de autores contemporâneos, neste caso um conto de Howard Wolf, professor universitário e escritor que, desde o início, abraçou o projecto da Cátedra e que integra o Conselho Editorial desta Revista. A secção Arte do Tempo apresenta meditações analíticas sobre intelectuais de referência ligados a Cascais. Neste número a historiadora Ana Pau- la Menino Avelar aborda a obra que José Manuel Tengarrinha, recentemente desaparecido, dedi- cou à imprensa em Portugal. A secção Quadros de uma exposição pretende dar a conhecer segmentos de exposições que passaram pelo Centro Cultural de Cascais. Neste número é o caso da obra de Ted Witek, enquadrada por Hilda Yasseri, curadora da exposição Norte Sul, Este Oeste. A secção Brisas retoma a vertente ensaística, embora sem necessariamente pressupor uma unidade temática. Tal não sucede, porém, com os ensaios de Raquel Morais, Amândio Reis e Teresa Bartolomei, decorrentes do ciclo de cinema que decorreu em 2018 sob o tema “O Escritor na Sala de Cinema”. Por fim, a secção Auroras estéticas exibe textos que meditam sobre o espaço entre a arte e os contextos históricos. Neste número apresentamos um ensaio de Mário Avelar sobre o filme Jackie, de Pablo Larraín, suscitado por uma conferência sobre o centenário de JFK, inicialmente A Revista Cascais Interartes/Crossroad of the arts inscreve-se no projecto homónimo, Cátedra Cascais Interartes, nascido sob os auspícios da Fundação D. Luís I. Correspondendo ao espírito da Cátedra, esta Revista pretende ser um espaço de encontro e reflexão em torno das personalidades que lhe servem de impulso e a uma prática de diálogo entre diferentes formas de expressão criativa. Deste modo, a estrutura deste primeiro número que pretendemos ver prolongada nos que se lhe seguirão, reflecte uma pluralidade de abordagens analíticas, de meditações estéticas e de exercícios criativos, no passado e no presente. Observemos, então, elipticamente essa estrutura. Na secção que designámos Portfólio , reunimos ensaios em torno de um autor ou tópico, neste caso Ana Hatherley, observada a partir de análises de Ana Marques Gastão, Elisabete Marques e Maria do Rosário Monteiro, aos quais se junta um depoimento do compositor João Madureira. A secção Poéticas I revisita criadores que integram o núcleo de personalidades da Cátedra, sendo neste número dedicada a Mário-Henrique Leiria, de quem reproduzimos originais devido à gentileza de João Abel da Fonseca que acedeu ainda a enquadrá-los num contexto familiar. Os nossos agradecimentos estendem-se a José António Silva, autor das fotografias daqueles originais. EDITORIAL Mário Avelar

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8 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS apresentada no Museu Castro Guimarães, na qual participou também Howard Wolf. Como se depreende do que acabei de expor, pretendemos que esta Revista funcione como um solo de coabitação entre o rigor ensaístico e a inovação nas suas mais diferentes formas de expressão estéticas. Uma derradeira informação: os textos aqui reproduzidos podem surgir tanto em português como em inglês, sendo objecto de revisão por pares. Não podemos concluir esta apresentação sem expressarmos os nossos agradecimentos a Maria de Jesus Ventura, cuja eficiência e rigor foram determinantes para a elaboração deste número, e a Nuno Lemos, cujo talento e sensibilidade estética foram decisivos para o perfil deste objecto. Boas leituras! EDITORIAL

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9 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS EDITORIAL

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10 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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11 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO

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13 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Conheci a Ana Hatherly em 2003, no contexto que nos diversos campos da sua produção de uma encomenda da Culturgest, por ocasião artística nos mostra o quão intrinsecamente dos seus dez anos de actividade. Foi-me ligadas estão as várias artes — uma artista encomendada por António Pinto Ribeiro uma multidimensional, que implica a música e a peça para orquestra de câmara para integrar pintura na escrita de um poema, como implica a um concerto encenado, onde também foram escrita e a fala num desenho, não nos deixando estreadas peças dos compositores Nuno habitar um só destes campos, mas obrigando- Corte-Real e Carlos Marecos. Telefonei-lhe. nos a descobrir o espaço da sua relação. Ana Foi extremamente amável e começámos uma Hatherly era um poeta — digo poeta, porque relação de intensa comunhão artística, que vi era assim que falava de si própria, e não como interrompida pela sua morte em 2015 — ou poetisa, como dizia que eram tantos homens. talvez não, porque a sua memória ainda está Sempre se considerou um artista do seu tempo, bem presente em mim. Fiquei por diversas e simultaneamente ao facto de perceber que a vezes surpreendido pela sua jovialidade, que sua arte era mais uma carruagem do comboio vinha da parca saúde que ostentava, desde a da arte portuguesa — falava-me com um sua juventude. Pude testemunhar a enorme não escondido entusiasmo da poesia visual generosidade com que se sabia parte de um barroca portuguesa —, sabia bem o lugar e enorme comboio histórico, em que não deixava a linha traçada por esse mesmo comboio no de acenar. Quando a conheci, a Ana vivia no espaço artístico para além do português. Era meu bairro, se bem que não dispensasse a sua muito permeável ao acontecimento industrial segunda casa no Estoril, para onde ia ao fim- de-semana. Embora fosse conhecida como Ana prazer tê-la conhecido. Hatherly — porque tinha casado em Inglaterra e, de resto, tinha vivido muitos anos na Alemanha, A peça que estreou nos 10 anos da Culturgest — em Inglaterra e nos Estados Unidos — era uma concerto encenado por Ana Tamen, em que as pessoa cujo perfil artístico pertencia ao espaço duas cantoras (Ana Ester Neves e Ana Paula Russo) cultural português, e daí a sua ligação com os ostentavam os belíssimos figurinos da saudosa irmãos Campos (do Brasil) e com Eugénio Melo e Vera Castro — é um tríptico sobre três poemas de Castro, entre muitos outros artistas portugueses. Cedo me apercebi que estava perante alguém 1» (HATHERLY, 2001: 41). O concerto intitulou-se e tecnológico da contemporaneidade. Foi um Ana Hatherly: «No Jardim» (HATHERLY, 2001: 40), «Arte Poética» (HATHERLY, 1998: 16), e «Poema PORTFÓLIO A.H. João Madureira

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14 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS “Eklampsis”, se bem que a peça se chame “Três está no poema: aí se manifesta a dupla crença de Momentos para Ana Hatherly”. Se o primeiro e que na inscrição está uma fonte de significado o terceiro poemas têm de imediato uma relação das coisas, e de que não há uma realidade única; com a música pela espacialidade epidérmica pelo contrário, estamos sempre a inscrever para que os caracteriza (pois que fazem parte da que algo aconteça — a noite não é vazia, mas chamada poesia concreta que Ana Hatherly tão contém dentro de si um infindável número de bem cantou), “Arte Poética” é como que um realidades. Para mim, como músico, isso foi muito ‘meta-soneto’ que nos oferece uma ponderação importante, porque esta questão aponta para profunda sobre o fazer artístico. E por isso decidi uma preocupação que me acompanha desde que este poema seria para recitante e piano sempre, ligada à possibilidade de diversidade (mais íntimo, portanto), enquanto os outros dos materiais, em contraponto à hegemonia dois para dois sopranos e orquestra de câmara de um material único, herdada de Schoenberg (mais extrovertidos). “No Jardim” expõe como e a sua concepção do material musical a partir a realidade na sua multiplicidade consegue do total cromático e do dodecafonismo. Além buscar novas ligações em diversos morfemas do mais, o poema de Ana Hatherly chama a melódicos, cuja relação é construída também atenção para o facto de aquilo que pensamos pelo ouvinte, suspendendo-o do tempo. Em “Arte como ausência ser a presença de outra coisa. A Poética”, o piano como que reflecte o sujeito potência de sentido que habita tudo, a noite que lírico, absolutamente no centro do poema e, no a Ana canta, é, na minha opinião, a potência do entanto, totalmente descentrado do que enuncia. pensamento de Giorgio Agamben (2005, 2008). Finalmente, “One” opõe a realidade mecânica à Esta noite é o lugar de onde parte e para onde sua apropriação subjectiva e musical. A segunda vez que compus sobre texto de exploração das possibilidades de um poema, Ana Hatherly foi por ocasião do concerto como se se tratasse de tema e variações, em que comemorativo dos 40 anos do Grupo de Música a transformação de um objecto é vista como a Contemprânea de Lisboa, em 2010. “Noite” para sua essência. E a diversidade a que apela todo mezzo-soprano e 8 instrumentistas, foi escrito esse fazer dela é-me também muito próxima, sobre o poema “Noite Canto-te Noite”(HATHERLY, como quem explora as muitas possibilidades de 2001: 135), que é o primeiro de três momentos de um só corpo. um poema sobre a noite, “concebido como uma partitura musical” segundo a poeta (HATHERLY, A terceira vez que escrevi música a propósito 2001: 134). A peça está escrita sobre os três de Ana Hatherly não foi já concretamente primeiros versos do poema: “Noite / Canto-te sobre textos dela, mas sim um ensaio de noite para que tu definitavamente / existas”. retrato, integrado num ciclo de estudos para Como escrevi na nota de programa na estreia, piano intitulado “Estudos Literários - Retratos”, trata-se de uma meditação musical sobre a noite, em 2012. “A. H.” é dedicado a Ana Hatherly fértil e desconhecida, que nos acompanha. O e é uma composição sobre o paradoxo; é um que norteou o meu trabalho sobre estes versos caminha todo o artista na sua busca, viagem, deambulação. A Ana mergulhava muito na continuum constantemente reiterado e portanto PORTFÓLIO

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15 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS interrompido. Canta o eros frenético que encontramos nas suas obras. É um retrato da Ana, da sua maravilhosa capacidade de nos conquistar a jogar um jogo visual de palavras, de leitura, trocando-nos as voltas ao nosso horizonte de expectativas, jogando como um mestre. O legado de Ana Hatherly — fica a sua presença; fica uma aguda consciência do seu tempo, tanto em relação ao período barroco que estudou como académica, como em relação ao tempo mecânico e tecnológico que habitava. Uma consciência agudíssima e certeira da época artística em que vivia, a par de uma consciência política muito refinada. Internacional, porque profundamente local. De todos os tempos, porque decididamente contemporânea. Ana Hatherly é uma artista a redescobrir pelas gerações contemporâneas e a não arrumar numa qualquer catalogação museológica. BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio (2005). “ La potenza del pensiero ”. La potenza del pensiero. Saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza Editore, 273- 287 ____________________ (2008). Bartleby. Escrita da Potência . Edição de G. Agamben e Pedro A. H. Paixão. Lisboa: Assírio & Alvim HATHERLY, Ana (1998). A Idade da Escrita. Lisboa: Ed. Tema _____________________ (2001). Um Calculador de Improbabilidades. Coimbra: Quimera Editores PORTFÓLIO

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17 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS INTRODUÇÃO Conheci pessoalmente a Ana Hatherly já na última década da sua vida. Não fui sua discípula, apenas colega mais nova, num momento em que tentávamos reactivar o Instituto de Estudos Portugueses, de que a Ana tinha sido fundadora, na FCSH. O entusiasmo e tenacidade com que se empenhou nesta tarefa foi a mesma que caracterizou toda a sua vida: lutar por um projecto que queríamos fosse diferente, que incorporasse o passado mas trilhasse novos caminhos. Quiseram outras forças que o projecto não avançasse como o tínhamos sonhado. Nem isso a fez desistir: dentro de um novo quadro de premissas, a Ana continuou a ver a possibilidade de fazermos diferente. Assim nos integrámos no então Centro de História da Cultura (FCSH), e posteriormente no que é hoje o CHAM, Centro de Humanidades, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade NOVA de Lisboa. Nos três momentos a Ana Hatherly nos mostrou que não importa o lugar onde estamos, mas aquilo em que acreditamos: que podemos quebrar fronteiras, descobrir sempre novos significados, novos desafios, inovar. Foi comigo O que o mundo não tem O que o mundo não diz O que o mundo não é. Ana Hatherly 1 CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa; Email: [email protected]; Orcid: 0000-0001-6214-5975 PORTFÓLIO Breve périplo pel’ A Cidade das Palavras MARIA DO ROSÁRIO MONTEIRO 1

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18 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS e com a incansável Maria do Rosário Pimentel Foi com sincera satisfação que eu e a Rosário que organizámos dois Congressos numa área Pimentel pudemos, na pequenez das nossas em que a Ana era a Mestre: o Barroco. Refiro- me às comemorações dos Centenários do Padre de ver (timidamente) desmentido o profundo António Vieira (2008) e de D. Francisco Manuel e amargo realismo que a caracterizava, a sua de Melo (2009) . Ao mesmo tempo, decidimos extrema lucidez perante a realidade do mundo a 2 fazer uma homenagem a Ana Hatherly. De certo que pertencia, e de Portugal em particular. modo, pusemos em prática o espírito da Tisana Em 2007, Horácio Costa entrevistou-a e, a dado 204 (ultrapassando a dimensão macabra que a momento, perguntou-lhe como esperava que leitura apressada de muitos leitores, tão contrária fossem celebrados os seus 50 anos de vida à estética Hathleriana, conduz à ilusão): Há dias tive uma óptima ideia: Quando uma pessoa está muito muito doente, é evidente que se torna candidata a morto. Então devia fazer-se o seguinte: assim que os sintomas fossem iniludivelmente fortes, o candidato a morto devia desde logo jazer no seu caixão aberto, convidando-se os amigos a vir colocar flores, dizer adeus, etc. Assim o candidato poderia apreciar devidamente as homenagens. (HATHERLY, 1988: 97) Estávamos então em 2008, ano em que se celebravam os 50 anos da vida literária de Ana Hatherly. Mas a sua obra é muito mais do que a dimensão literária. A homenagem devia ser feita em vida e com a participação activa da própria Ana. Assim foi. A Ana Hatherly deu-nos os contactos dos amigos que queria que colaborassem no livro, leu e aprovou os textos, incluindo os de outros autores que lhe propusemos (alguns em início de carreira artística) e, numa tarde amena, na FCSH, debatemos o título adequado, aquele com o qual a Ana se identificasse. Sob sua proposta o livro chama-se Leonorama (MONTEIRO & PIMENTEL, 2010) . 3 capacidades e meios, dar a Ana Hatherly a alegria literária. Sem obter uma resposta directa (ela era hábil em esquivar-se quando queria, como um gato, silenciosamente), Costa insiste e Ana acaba por responder o que lhe vai na alma mas, sobretudo, o que vai na mente lúcida de quem conhecia o mundo em que viveu, as pessoas que o habitam: Costa: O Caravaggio tinha um motto: Nec Spe Nec Metu [sem esperança, sem medo], o que me provoca um frio na espinha. Você tem algum? Ana: Transfiro para aqui a resposta à última questão da alínea anterior: Acho que não irá haver comemoração nenhuma. Os portugueses costumam celebrar os seus artistas só depois de eles terem morrido, e às vezes nem assim. Por isso, nada espero… 4 Depois da sua morte, têm sido várias as homenagens, as exposições. Mas A HOMENAGEM PORTUGUESA que a dimensão artística e pessoal de Ana Hatherly merece, em minha opinião, essa ainda não aconteceu, porque o mundo cultural português receia a diferença, o que está fora da norma, do cânon ou dos interesses pessoais, das ambições mesquinhas . 5 PORTFÓLIO 2 As actas destes congressos foram publicadas, encontrando-se já em acesso aberto (MONTEIRO & PIMENTEL, 2010, 2011). 3 Esta obra encontra-se também disponível em acesso aberto. 4 Sublinhado meu. 5 Não posso deixar de me referir ao Colloque International Le Labyrinthe. La chasse de l’improbable et l’œuvre de Ana Hatherly que decorreu em Paris, em 2013, por iniciativa de Ana Marques Gastão e do qual resultou o número 16 da revista Plural Pluriel - revue des cultures de langue portugaise (https://www.pluralpluriel.org/index. php/revue/issue/view/12). Foi um trabalho conjunto para celebração dos 50 anos da publicação de O Mestre , em que participaram a Université Paris Ouest – Nanterre la Défense, da Cátedra Lindley Cintra, da Université Paris 8, do Instituto Camões e da Maison du Portugal – André de Gouveia da Fundação Calouste Gulbenkian, em Abril de 2013. O programa encontra-se disponível online: https://matlit.files.wordpress.com/2013/04/programme-ah-dc3a9finitif-16avril.pdf.

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19 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS A presente iniciativa vai no sentido de colmatar essa falta. Por isso acolhi, desde o primeiro momento, o convite que gentilmente Mário Avelar me endereçou para participar nesta obra. Tendo homenageado, singela e despretenciosamente, em vida, essa grande mulher, desejo fazê-lo agora, apresentando a minha interpretação pessoal de algumas Tisanas , essa colectânea emblemática da produção literária de Ana Hatherly que se alteia como a criação da sua vida, como ela própria afirmou. Há grandes especialistas da obra Hatherliana, principalmente no Brasil, onde foram feitas várias teses de doutoramento sobre a obra da autora. Não tenho a pretensão de conhecer a obra de Ana Hatherly como Ana Marques Gastão, José Martins Garcia, Simone Pinto Monteiro de Oliveira, Fernando J. B. Martinho e tantos outros. Os seus escritos estão traduzidos em quase duas dezenas de línguas, e são estudados em várias partes do mundo, mas muito pouco em Portugal . 6 O que se segue não tem a pretensão de ir além de uma interpretação pessoal, centrada em algumas Tisanas e em entrevistas onde, por vezes, Ana levantou um pouco do véu com que sempre ocultou a profundidade do “eu”, que reservava apenas para um pequeno círculo de amigos. PORTFÓLIO 6 Aproveito para chamar a atenção para o trabalho de José Maria Alves que, no seu canal do Youtube, lê várias Tisanas de Ana Hatherly: Palavras ditas (https://www. youtube.com/user/homeoesp/search?query=Hatherly).

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20 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ENTRANDO N’ A CIDADE DAS PALAVRAS ergue-se do arrepio da sombra guerrilha entre parênteses ergue-se da constante chacina procurando outra coisa outra causa o outro lado do ver. (HATHERLY, 2003: 36) Sobre as Tisanas , disse Ana Hatherly, em 2007: A verdade é que, no seu actual conjunto – 463 –, que levei mais de 30 anos a escrever, correspondem a uma obra aberta, que não vai chegar ao fim senão quando eu morrer. Como tantas vezes já o disse, eu sou “um artífice que manipula e interroga a matéria com que trabalha”. De qualquer modo, trata-se de um itinerário de uma vida. (COSTA, 2007: 21) Porque as assume como “itinerário de uma vida”, realidades. A sequência de polígonos regulares Ana Hatherly foi acrescentando Tisanas sem está desenhada acima de um mar revolto, águas reescrever ou modificar as anteriores. Isso seria traçadas a negro, o caos primordial, o mundo uma traição à concepção que as informa: serem incriado que subjaz à cidade das palavras. uma “obra aberta”. Analisar 463 Tisanas seria Assumindo que os treze quadrados e rectângulos um desafio que exigiria um vasto conhecimento representam as palavras unidas em sequências em diversas áreas, um périplo por tudo o que a autónomas ou fragmentos de conversas que se artista criou, mas também pelo que leu, pelo que chocam ou prolongam, não podemos ignorar integrou, interiorizou e transformou do mundo, as cores diferentes, como vozes díspares, ou das leituras, das viagens, dos contactos. Mas distintos sentidos, formas diversas de ver a seria também uma certa forma de “traição” ao realidade, aquela que o adepto do pensamento artístico de Ana Hatherly. Como desmonta num sussurro lapidar: “nada é real, afirma Ana Marques Gastão “[t]udo é enganador sabe, nada é real (Tisana 188, HATHERLY, 1988). nas Tisanas , tudo aparece e desaparece na certeza de uma impossibilidade” (GASTÃO, Se nos retivermos por um momento nos tons dos 2017: 2). Perante a impossibilidade/incapacidade, esco- lho um corpus modesto: centrarei a minha inter- pretação, assumidamente pessoal, em algumas entre o transcendente e o dionisíaco, entre a Tisanas recolhidas de A Cidade das Palavras , ascese e o erotismo. reunião das primeiras 222 Tisanas (HATHERLY, 1988). Olhando para o pequeno livro deparo-me de imediato com um duplo desafio. PRIMEIRO DESAFIO O primeiro impõe-se logo na capa, ilustrada por Ana Hatherly. Sob o título A Cidade das Palavras , encontramos um conjunto de formas poligonais em que se unem/confundem treze rectângulos e quadrados de sete cores diferentes. Se o quadrado, de que o rectângulo é uma variante, é o símbolo da terra, do universo criado, da cidade a que a palavra dá realidade(s), mesmo que ilusória(s), então o que temos perante os olhos é a desordenação das palavras/ I Ching quadrados/palavras descobrimos, por exemplo, o cor de laranja, um híbrido entre o amarelo e o vermelho, expressão da maleabilidade dos sentidos, da plasticidade polifónica que oscila Perto dos dois quadrados laranja sobressaem PORTFÓLIO

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21 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Excerto da capa de A Cidade das Palavras. Autora, Ana Hatherly.

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22 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS três azuis-escuros, cor do infinito, que seduz parcelar, incompleta, fruto do que lê, e de tudo o olhar, para que nele se perca. Dois dos o que compõe o léxico do seu imaginário. Tem a quadrados azuis, de um lado, justapostos ao legitimidade transitória de todas as realizações laranja, e ao vermelho escuro, mistério da vida humanas, marcadas pelo tempo, esse tema ou símbolo de vida inexplicável, porque sem central na obra de Ana Hatherly. fim, porque dividida entre a espiritualidade e a dimensão erótica. Reforçando este movimento perpétuo - cujo composição das treze formas geométricas. mistério permanece imperscrutável pois ao Dada a educação religiosa de Ana Hatherly, infinito se opõe a forma geométrica fechada - o seu conhecimento da mitologia cristã, do surgem os quadrados brancos e o preto. Aqui é pensamento oriental e da simbologia em geral, de salientar, em minha opinião, a predominância o número, no contexto das do branco - quatro formas – duas unem-se a um o que é parcial e relativo, incompleto e sempre único quadrado preto que, contudo, envolve inacabado, o que se repete na inutilidade, mas toda a composição do que chamámos “cidade que não tem fim, apesar de periodicamente das palavras”, pois os limites de todas as formas interrompido. Neste treze, o quadrado negro é o geométricas estão delineados a negro, bem centro, o elemento aglutinador: o Cristo emulado como as ondas do mar. Se o branco, na sua por trinta dinheiros, o Sísifo condenado à busca quaternidade, reforça a ideia de início e fim da de um sentido que não existe, empurrando a vida racional, diurna, inevitavelmente se une pedra pela montanha acima para de novo repetir ao seu oposto, o preto, a cor da indiferenciação, o mesmo acto porque o inexplicável eternamente do caos primordial, a cor da actividade o impedirá de concluir a sua tarefa: encontrar um inconsciente, nocturna, a cor que envolve toda sentido para a realidade que não é real, a ordem a criação pictórica, o elo de união entre tudo - o que construímos racionalmente e que mais não é positivo e o negativo, a vida e a morte, a criação do que uma ficção, um simulacro de sentido, uma e a destruição, a compreensão e o seu oposto. Creio ser significativo o facto de a composição gráfica conter treze formas, sendo uma negra. Abaixo do quadro surge a reprodução de um Como a poeta alerta, as Tisanas e todo o trabalho texto autógrafo de Ana Hatherly. Lê-lo é um da sua composição, ordenação e edição “[s]ão trabalho de decifração, mais um desafio lançado, produto de séculos de saber […], mas nunca desde o início da obra, pela poeta/artífice apenas aforismos ou epigramas ou lúdicas que manipula e interroga a matéria com que acrobacias” (COSTA, 2007: 21). O leitor não deve trabalha. por isso ignorar nenhuma pista, nem acreditar na Tisanas “procurando outra coisa/outra causa/o interpretação que dela faz. Estando perante uma outro lado do ver”, assumindo conscientemente obra aberta, deverá assumir a atitude humilde a mitificação do real (HATHERLY, 1988: 8) - e o de aceitar que o que interpreta é uma visão seu contrário. É com esse espírito de quem adianta hipóteses que sugiro haver uma intenção deliberada na Tisanas , remete para racionalidade que eternamente esbarra na pura ausência de sentido ou intencionalidade. A Cidade das Palavras é uma cidade de PORTFÓLIO

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23 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Excerto da capa de A Cidade das Palavras . Autora, Ana Hatherly.

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24 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO A poeta, que também foi professora, utiliza E as o Prólogo de A Cidade das Palavras para com um enigma, desafiando-o a compreender apresentar a sua própria interpretação das a inutilidade das premissas a que o racional Tisanas , e para advertir o leitor de que o que em nós se agarra desesperadamente, criando lhe é proposto foge deliberadamente à norma, simulacros de normalidade. a todo o tipo de padrão mas principalmente ao cânone interpretativo que assume a descoberta do significado como objectivo final da leitura. Por isso a poeta/pedagoga avisa: Querendo furtar-se à interpretação imediata e deslizando para uma aparente ilogicidade, [as Tisanas] constituem-se como uma forma de auto-reflexividade do texto. Também são metalinguagem: são metaliteratura. Fundindo o real e o imaginário numa antologização do saber sobre a qual criticamente reflectem, as Tisanas assentam nessa transcontextualização característica do metatexto. (HATHERLY, 1988: 8) O aviso ao leitor surge muito antes de este chegar à Tisana 80 : “Era uma vez uma história tão Talvez não a totalidade dos sentidos que posso 7 impressionante que quando alguém a lia o livro tirar desta Tisana. Sei que não é feita de tília, começava a transpirar pelas folhas. Se o leitor porque não me tranquiliza, não adormece a fosse muito bom o livro soltava mesmo algumas mente. Mas esse é um dos objectivos fulcrais, na pequeninas gotas redondas de sangue.” (53) O leitor muito bom será aquele que não esquece leque de pressupostos interiorizados que foram que o livro que está a ler se quer furtar a construídos para nos “adormecer”, para nos qualquer “interpretação imediata”, que o que dar segurança, para nos sentirmos como seres quer que descubra nestas páginas será fruto que controlam, quando de facto são controlados de trabalho árduo provavelmente votado ao por uma infinitude de imprevisibilidades . Ana fracasso ou, quando muito, a uma vitória de Pirro. Hatherly di-lo de forma muito clara: Uma analogia surge no meu espírito, ao ler esta Tisana. É como se o texto parafraseasse Churchill e dissesse ao leitor: “I have nothing to offer but blood, toil, tears, and sweat”, e o “leitor muito bom” lhe respondesse: “I will never surrender”. Tisanas contra-atacam o “leitor muito bom” Perdoem-me a corruptela. O estilo, essa obsoleta pluma, encontrei-o uma vez quando passeava num parque meditando sobre a profusão. Um animal distraído o deixara cair, certamente. Parei um instante. Detive-me considerando a extrema delicadeza das suas fibras. Teria de facto sido por distracção que o animal se separara daquela sua parte integrante? Então impôs-se-me a necessidade absoluta de averiguar essa questão. Era preciso saber se o animal de facto andava distraidamente perdendo a sua integridade ou não. Percorri o parque de uma ponta a outra procurando todo e qualquer indício. Procurei até chegar a noite. Quando a noite chegou compreendi. (Tisana 27, HATHERLY, 1988: 53) Compreendi? minha opinião, por detrás do conjunto de todas as Tisanas : a inquietação permanente com um vasto 8 As Tisanas também são isso: reflexão sobre a ilusão da verdade que é a arte; reflexão sobre a cultura como projecção da invenção do real; reflexão sobre a consistência do jogo como veículo de conhecimento na sua função libertadora de energia, criadora de liberdade; reflexão sobre as formas. Mas 7 Não há nenhuma razão para que as Tisanas sejam lidas seguindo a sua numeração. Esse é um exercício automático que perde o sentido quando lemos o conjunto díspar de formas, temas, e objectivos de cada pequena prosa. 8 Esta ideia parece-me expressa na Tisana 28: “A civilização consiste em aprendermos a fazer naturalmente tudo o que não é natural. É daí que vem a ideia de ange- lismo porque o animal em nós consente tudo. Só de vez em quando é que sentimos uma estranha melancolia e sacudindo uma mosca dizemos apetecia-me tanto ir para o campo.” (HATHERLY, 1988: 24-25).

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25 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS nelas também são patentes as chamadas ao real concreto da sociedade contemporânea, inclusive a portuguesa dos anos 60 e 70, nas muitas alusões críticas ao poder instituído: são muitas as Tisanas em que se fala de tirania, de repressão, de suicídio, de exílio. (9) Neste excerto, Ana Hatherly desenvolve uma descrição aparentemente linear do que está por trás das Tisanas. Mas a linearidade resume-se à necessidade de escrevermos (e lermos) em linhas direitas, da esquerda para a direita, seguindo um conjunto de regras sintácticas e de convenções. Ao nível semântico, o pequeno excerto envolve-se em circularidades constantes, em contradições, em impossibilidades, como refere Ana Marques Gastão (2017: 2). José Maria Garcia, no Posfácio desta edição, intitulado precisamente “Enigmas da Circularidade”, referindo-se a um texto de Ana Hatherly que não está incluído em Tisanas, coloca a questão no combate ao senso comum, que a escrita da poeta, qual Samurai, elege como combate honroso : 9 O chamado senso comum, que por vezes parece ser unicamente uma forma de razão vulgarizada, argumentará, contra a problemática aqui exposta, que ninguém confunde um retrato com a pessoa retratada, nem uma iguaria com uma «natureza morta». Acontece porém que essa forma de razão vulgarizada - e tanto mais estreita quanto mais divulgada - é apenas um quadro rotineiro de entendimento dum real que se quer comodamente estabelecido, universal e submisso como a concepção de animal doméstico. Não é esse, obviamente, o quadro de entendimento que nos propõe Ana Hatherly. Não será esse, em última análise, o quadro de entendimento - se de entendimento se trata - aplicável ao universo poético. Até no campo do conhecimento supostamente objectivo, seria bom «to recognize the essentially paradoxical nature of reason itself». (GARCIA, 1988) 10 SEGUNDO DESAFIO A Cidade das Palavras reúne 222 Tisanas. Cento e setenta e seis foram previamente editadas, e juntam-se-lhes nesta edição 46 inéditas, chamando a autora a atenção para que “a Tisana 201 talvez possa ser considerada não só como epítome desse grupo [de inéditas] mas também epítome de todas as Tisanas que até agora escrevi.” Porém, de imediato, Ana Hatherly desconstrói esta hipótese com uma adversativa lapidar: “Mas nem sempre penso assim” (HATHERLY, 1988: 10). Mais uma vez, a poeta puxa o tapete onde o leitor firmou os pés, imaginando-se em chão sólido, o das certezas inabaláveis. De imediato será tentado a, apesar da advertência, saltar para a Tisana 201, à procura de um novo equilíbrio... que não encontra: “A arte torna-se arte quando a sua naturalidade original é transformada pelo contexto em que funciona. Por exemplo: a pérola no brinco, a ideia na escrita, etc. Pergunto-me então: Seremos realmente obrigados a escolher entre a ilusória superioridade do conceito e a gloriosa efemeridade da rosa?” (Tisana 201, HATHERLY, 1988: 96) Talvez (re)descubra que, por todo o conceito que enforma as Tisanas , perpassa a fina e constante ironia/paródia que a poeta assume como característica da obra. É com a convicção de que nada é seguro, que nenhuma interpretação é isenta de falha(s), que me detenho no segundo problema: o número 222. PORTFÓLIO 9 Tomo a expressão “Samurai” do artigo de Ana Marques Gastão (2017). 10 José Maria Garcia cita de FROMM, E., SUZUKI, D. T., e MARTINO, D. (1960). Zen Buddhism & Psychoanalysis . New York: Harper & Bros, 27-28.

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26 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Ana Hatherly era uma conhecedora da simbólica revela como quase um grito contra a passividade hermética, o que me permite assumir que a com que se aceitam afirmações generalizadoras, escolha deste número não se deveu ao facto chocantes pela imbecilidade e pela frequência e de, no momento da edição, Ana não ter mais leviandade com que são produzidas: nenhuma Tisana escrita, do mesmo modo que assumo que a escolha das que incluiu nesta edição foi muito ponderada. Com a convicção de que nada é seguro, arrisco a análise simbólica deste número, ou melhor, deste jogo (assumido) entre o número dois e três. Quase todas as interpretações do número dois apontam para estarmos perante um símbolo de oposição, de conflito, de insegurança. O dois é um estado transitório, como deixam claro os versos iniciais do capítulo 42 do Tao te ching: The Way bears one, The one bears two, The two bears three, The three bears the ten thousand things. (LeGUIN & SEATON, 1997: 42) Sendo o número do dualismo, o número 2 expressa, na minha opinião, a estética das Tisanas , o jogo de contradições, a dualidade de valores, a ironia que diz o contrário do que afirma, a oscilação entre racionalidade e erotismo, etc. Ao ser repetido três vezes (222) a dualidade transforma-se numa totalidade: tudo nas Tisanas aponta para o não sentido, para o desmantelamento da ilusão de realidade, para o próprio questionamento do valor da arte. Assinala ainda a rebelião contra o status quo , contra a predominância exasperante do senso comum, da normalidade, até a revolta pela aceitação da estultice como normalidade. Creio que é dentro deste quadro que podemos tentar a interpretação das Tisanas . Uma se me Não é inocente a referência a Fernando Pessoa, Nesse dia eu lera um artigo em que se falava da evolução das artes em que se concluía que nada nos restava já fazer uma vez que tudo estava feito já e nada lhe poderíamos acrescentar. Fiquei a pensar seriamente no assunto durante um certo tempo. Até que finalmente compreendi. Dirigi- me para o meu escritório sentei-me à secretária tirei da gaveta uma folha de papel e comecei a escrever um longo telefonema. Praticando aquilo a que chamo a prova de resistência dos materiais poéticos chamei o meu porco Rosalina e pedi-lhe que o lesse e depois mo enviasse pelo correio. (Tisana 10, HATHERLY, 1988: 16) Sente-se a ironia amarga da poeta, chocada, revoltada com o mundo da mediocridade pseudo-racionalista. Como salienta Garcia, as Tisanas são uma das formas que Hatherly encontrou para, entre outros objectivos, revoltar-se contra o ocidente “que padece de excessiva racionalidade quando avaliado pelos pensadores de outras culturas, afinal não padece de racionalidade nenhuma. Apenas se esforça por remendar, tant bien que mal, as brechas dum edifício autoritário: o da sua discursividade que, no fundo, encobre o irracional, o indemonstrável, o dogma” (GARCIA, 1988: 126). É contra “o irracional, o indemonstrável, o dogma” que a poeta se revolta afirmando, na Tisana 114: “Estou na arcada da velha praça é quase noite. O tráfego está no auge. Estou perto do café que Fernando Pessoa frequentava. Olho o céu e digo parece de papel pardo. Encosto-me a uma das colunas. Penso e repenso o suicídio diário. Estou triste. Não posso amar senão em liberdade.” (HATHERLY, 1988: 65-66) PORTFÓLIO

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27 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS esse “eu” que se desmontou noutros “eus”, Portugal dos anos 60 e 70 não estava preparado, cada um com a sua voz, assim abarcando visões nem as elites queriam aceitar a singularidade de diferentes, mesmo contraditórias da realidade. Ana Hatherly . As suas viagens, a formação no A conclusão da poeta, de certo modo, ecoa a estrangeiro, a vida académica iniciada fora do infelicidade que, em minha opinião, Fernando país são uma forma de exílio simultaneamente Pessoa sentia e expressava na multiplicidade desejado e imposto, porque a poeta “só [podia] de “eus”. A Tisana termina com um grito que amar em liberdade” . Um país de coveiros se desprende da alma da poeta: “Não posso invejosos não é um país onde a liberdade para amar senão em liberdade”. A liberdade é criar, sem aceitar compromissos, sobreviva: necessariamente plural, desestabilizadora, combatente, produtora. BREVE PÉRIPLO PELA CIDADE DAS PALAVRAS Se apenas a capa e o número de Tisanas na edição de A Cidade das Palavras , podem suscitar os comentários supra, imagine-se quantas páginas, quantas teses, podem gerar-se a partir das 463 Tisanas. Num breve périplo por A Cidade das Palavras , seguirei apenas algumas Tisanas que têm por ponto de partida/chegada Portugal. A liberdade é um valor absoluto para Ana Hatherly. A liberdade em todas as suas dimensões, que exige uma voz independente, crítica, directa. No contacto pessoal essa era, talvez, a primeira impressão com que ficávamos. Ana dizia sempre o que pensava, sem sentimentalismos, sem rodeios. Fê-lo ao longo da vida e, como ela própria confessou: “Eu não rejeitei a minha condição de mulher: casei, tive uma filha, quis ter família. Mas o que acima de tudo quis foi ser uma pessoa, ser eu própria. Tive que pagar um alto preço por esta minha singularidade” (MONTEIRO & PIMENTEL, 2010ª: 15). 11 12 Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português. (Tisana 212, HATHERLY, 1988: 99) Do mesmo modo, um país em que o padrão e a normalidade imperam, onde o pensamento crítico é “proibido” ou simplesmente ignorado, é um país sem futuro, incapaz de criar, de evoluir: Numa república ideal cujo projecto começa a ser agora estudado a questão da humilhação a que está sujeito o indivíduo normal é um dos pontos fulcrais. De facto o cidadão é denominado Habitante da Linguagem tentando-se que a pessoa com ilusão não perdure. Os livros básicos para a formação do cidadão têm a forma de romances familiares em que o fantasma da unidade se perpetua. (Tisana 167, HATHERLY, 1988: 83) É também um país em que a capacidade de resignação torpedeia qualquer tentativa de mudança, de vida em plenitude: Era uma vez um homem elástico. Quando era preciso que ele passasse através duma porta mal aberta esticavam-no em comprimento e ele passava. Não era preciso abrir mais a porta. Quanto ao deitar-se, se a cama fosse curta encolhiam- PORTFÓLIO 11 Penso mesmo que o Portugal dos anos 80 e 90 foi um prolongamento deste status quo. 12 Há um conjunto de Tisanas dedicadas ao tema do exílio, várias associando o tema da ilha como lugar fechado, de isolamento, de prisão.

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28 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS no, ele dava em largura e assim estava sempre tudo certo. Este mito, que deu origem ao verbo procrastinar, há muito que é conhecido dos portugueses. (Tisana 219, HATHERLY, 1988: 102) Amante da liberdade, promotora/criadora da desconstrução da norma, Ana Hatherly viveu a revolução de Abril, viu desmoronar-se uma ditadura caquéctica, esclerosada, mas eficaz na normalização e no controlo dos seres ; porém, 13 não perdeu o olhar crítico, a capacidade de ver para lá da “realidade” celebrada. Tal como as vanguardas são para ser ultrapassadas por outras respostas/movimentos, também as revoluções tenderão para uma normalização até que nova revolução se gere: “Revolução revolução oh complicada rotação das velhas formas sob a agência do estímulo novo. Se a coacção existe é preciso combatê-la mas se não existe rapidamente é criada. Na escala dos valores o que não pende depende. Também” (Tisana 150, HATHERLY, 1988: 77). CONCLUSÃO (?) Que concluir? Como concluir uma análise a uma ínfima parte da obra de Ana Hatherly? Como pôr fim ao mar de ideias que as leituras e releituras suscitam no leitor? Como resolver o conflito entre poeta e leitor que Ana aborda na Tisana 126: “O autor e o leitor: estamos no limiar do prazer. Um de cada lado como anfitriões esperando tensos. Vivemos a problemática do segredo - se for divulgado deixa de existir se não for torna-se um horrível tormento. Alguns mestres dizem que o próprio do prazer é não poder ser dito.” (70) Renuncio à conclusão, porque desejo manter o prazer do não dito, porque não há fim na desordem que cada leitura instaura na ordem artificial da “realidade” . Deixo o texto em 14 aberto, com uma última Tisana, que, em minha opinião, expressa a atitude de Ana Hatherly perante a vida, a academia, as mentes “cultas”, a repugnância ao status quo instituído, seja ele qual for, porque a tendência será sempre a do silenciamento, da normalização, da promoção dos mais obedientes ou dos mais oportunistas. Nada como o riso para perturbar a ordem. Até sempre, Ana Hatherly. A assiduidade absoluta com que a ignorância persegue os pesquisadores só tem paralelo na insistência com que desconhecidos cães nos atacam quando entramos em qualquer quinta em visita. Devia ser isso o que Gogol queria dizer quando declarava que queria perseguir com o seu riso a eterna mediania (mil vezes pior que cem cães raivosos)(Tisana 133, HATHERLY, 1988: 72) PORTFÓLIO 14 Tisana 131: “Passeava num grande museu quando de súbito compreendi: sala a sala andar a andar tudo eram enormes folhas dum enorme livro tão grande que era preciso caminhar por ele fora. Foi então que compreendi que o leitor realiza a aventura de contribuir para que se invente diariamente a responsabilidade da desordem.” (1988, p. 71).

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29 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO BIBLIOGRAFIA COSTA, H. (2007). Entrevista com Ana Hatherly. Via Atlântica , 11, 18-22. http:// www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/ download/50659/54772/ FROMM, E., SUZUKI, D. T., & MARTINO, D. eds (1960). Zen Buddhism & Psychoanalysis . New York: Harper & Bros GARCIA, J. M.. “Posfácio; O Enigma da Circularidade”. HATHERLY. A. ed. (1988). A Cidade das Palavras . Lisboa: Quetzal, 117-136 GASTÃO, A. M. (2017). As “Tisanas” de Ana Hatherly – auto-retrato de um samurai ocidental. Plural Pluriel (16), 1-16 https://www. pluralpluriel.org/index.php/revue/article/ view/83 HATHERLY, A. (1988). A Cidade das Palavras . Lisboa: Quetzal _____________. (2003). O pavão Negro. Lisboa: Assírio e Alvim Le GUIN, U. K. & SEATON, J. P. (1997). Lao Tzu: Tao te ching: a book about the way and the power of the way . Boston: Shambhala Publications MONTEIRO, M. do R., & PIMENTEL, M. do R. eds. (2010a). L eonorama: Homenagem a Anna Hatherly . Lisboa: Colibri _____________________________________ ______. (2010b). Vieira: O Tempo e os seus Hemisférios . Lisboa: Colibri ________________________________________ ______. (2011). D. Francisco Manuel de Melo - Mundo é Comédia . Lisboa: Colibri

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31 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS especial? Em que medida é que o dispositivo fílmico relança a questão escrita-pintura? Para compreender o alcance da sua declaração sobre o cinema e tentar dar resposta às interrogações que origina, será proveitoso examinar o que guiou Hatherly ao longo da sua actividade poético-plástica. O exame daquelas que são as suas convicções artísticas permitir nos á averiguar como a experiência com o cinema é consequente e concordante com o resto da sua obra. Ajudar-nos-á também a verificar adiante as potencialidades do cinema, pelas quais a reactualização da escrita-imagem acontece. EXPERIMENTALISMO/ POESIA VISUAL Conforme se adiantou, a obra de Hatherly encontra-se intricadamente associada à exploração da dimensão visual da palavra escrita. Primeiramente, surge inserida no movimento PO.EX, nas décadas de 60 e 70 do século XX, e depois num espaço singular de criação, em que convergem a caligrafia, a pintura, o desenho, a performance, entre outros. Multifacetada, Hatherly não só soube reinventar as formas de escrever, como participou activamente na fundamentação teórica dos movimentos de vanguarda que integrou. Realizou, para o efeito, Numa entrevista concedida, em 2003, ao programa televisivo “Entre Nós” da Universidade Aberta, Ana Hatherly explica que, tendo iniciado o seu percurso artístico praticando uma literatura convencional, mais tarde optaria pela exploração do lado visual da escrita, experimentando também fazer cinema, entendido nas suas próprias palavras como “forma de expressão ou de criação ou de comunicação em que as duas facetas de escrita e pintura se reúnem de uma maneira especial” (2003, 1:16). É, nesse momento, interrompida pela jornalista, não chegando a elucidar a tese. Contudo, fica claro que Hatherly considera o cinema medium distinto para a exploração do carácter visual da palavra, aqui especificamente associado à pintura. O depoimento da autora causa, porém, alguma estranheza, sobretudo se pensarmos em alguns dos seus filmes, onde não é imediatamente perceptível a presença da escrita, incluindo os filmes de animação, feitos nos anos 70, que serão tomados como objectos de análise no âmbito deste texto. Por que fala, então, Hatherly da sua experiência cinematográfica associando-lhe a questão da escrita? Como é que os seus filmes expõem a relação escrita e pintura de maneira PORTFÓLIO Ana Hatherly e a escrita em cinema ELISABETE MARQUES 1 1 Investigadora pós-doc.

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32 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS pesquisas genealógicas e analíticas da poesia visual e da poesia experimental, testemunhadas em diversos volumes publicados, entre outros que poderíamos aqui elencar: O Espaço Crítico: do simbolismo à vanguarda (1979), A Experiência do Prodígio - Bases Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos séculos XVII e XVIII (1983), A Casa das Musas: uma releitura crítica da tradição (1995), Interfaces do Olhar - Uma Antologia Crítica / Uma Antologia Poética (2004). Nos textos de índole ensaística, fica patente a sua grande erudição e evidenciam-se alguns dos princípios norteadores do seu pensamento artístico. Daí a importância acrescida em considerar a produção crítica de Hatherly no seio de qualquer comentário feito à sua obra poética. Iniciemos, portanto, por “Texto e visualidade”, incluído no volume O espaço crítico – do simbolismo à vanguarda (1979), primeiro livro de ensaios publicado pela artista. Nele, Hatherly assinala alguns momentos decisivos, entre eles o barroco, o simbolismo, o modernismo e as vanguardas do século XX, para a reflexão crítica da literatura e, por conseguinte, para uma mudança de percepção do “literário”: O conceito de literatura que, justamente com Mallarmé (re)começa a ser contestado na sua consistência básica, estabelecida (que era o de Belas-Letras e, sobretudo, o de cultura oficial, burguesa), entra na sua fase de evolução moderna com o Simbolismo que, aliado ao Movimento impressionista, tem como contemporâneas a descoberta da fotografia e do cinema e a publicação de reforma social de Karl Marx. Se o Simbolismo, equiparado ao Sensacionalismo, contribui para uma diluição das estruturas do verso e, por prolongamento, do texto, como era praticado até então e fulgurantemente em tantos casos, essa diluição manifesta- se acima de tudo pela sua assimilação de características visuais que reduzem o poema a uma mancha, um conjunto de impressões (où rien ne pèse ni pose) prefigurando a arte abstracta ao nível da figura/imagem, acabando por pôr em destaque a mancha tipográfica, ou seja, o corpo visualmente formal do texto. É assim que o conceito de literatura é atacado nos seus alicerces formais, prefigurando o ataque às estruturas da sociedade que herdara e instituíra essa noção de cultura. […] O que nos parece importante salientar neste contexto é o facto de que é a partir do momento em que o conhecimento das leis que regem a percepção e a actividade intelectual se vai divulgando que as fronteiras entre as artes vão caindo, dando origem a formas múltiplas, complexas, híbridas, formas/charneira, entre as quais poderíamos situar o poema visual, ou simplesmente a crescente visualidade do texto. (1979, 95-96, itálicos nossos) Muito embora este longo excerto pareça con- sistir numa simples descrição de ocorrências, podemos entrever um conjunto de princípios teóricos e estéticos perfilhados pela autora, ra- zão pela qual ele se revela particularmente elu- cidativo. Desde logo, importa notar a referência ao processo de revisão (estética e política) de um conceito rígido e ideológico de literatura, asso- ciado à arte do bem escrever e a certas regras rítmicas e figuras de retórica. No fundo, trata-se de mostrar que existe o problema de definição do próprio conceito de literatura, sendo que a autora entende que essa mesma questão foi avan- çada pelas vanguardas suas contemporâneas. O questionamento do campo é percebido como gesto crítico basilar para o aparecimento de pro- postas e experimentações hibridizadas, que não se sustentam nas tipologias e convenções mais geralmente operantes, antes dependendo do ím- peto criativo do autor. Nessa medida, é a própria noção de poesia que está em jogo. Já não se en- tenderá poesia enquanto género associado à arte da versificação; alargar-se-á o campo remetendo poesia ao termo grego poiesis , “a actividade pela qual alguém produz algo que não existia antes”, PORTFÓLIO

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33 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS isto é, o próprio acto de criar. Não menos relevante é a menção, no mesmo XX, da noção de objecto à de signo. Teria sido excerto, aos novos meios de produção imagética esta conexão um dos impulsionadores da (na época analisada pela autora, a fotografia e experimentação poética, nomeadamente da o cinema), que teriam alterado necessariamente poesia concreta, na qual se encontra patente os modos de percepção, bem como de produção uma identificação entre do conhecimento e de pensamento . Se surgem 2 novas práticas e materiais que amplificam o Se é comum afirmar-se que na base destas terreno epistemológico, filosófico e perceptivo, vanguardas está o abandono da discursividade é natural que daí decorram mudanças no a favor da dimensão icónica da palavra, é campo artístico, nomeadamente nas repartições igualmente certo assumir-se que no centro dessa estéticas e de género, e, por conseguinte, na pesquisa poética se encontra a reivindicação produção. Não espanta portanto que, segundo a descrição seja, está em causa a defesa da componente da autora, certos movimentos, como o sensorial da palavra muitas vezes secundarizada simbolismo, tenham dissolvido as estruturas diante do significado. Daí que, entre as várias textuais (versos) habituais na sua época, possibilidades da palavra, seja destacada a sua resultando daí o enfoque sobre o sonoro (assim configuração, o seu desenho. sugere a citação de Paul Verlaine) e sobre a mancha tipográfica, isto é, sobre a condição Considerar a dimensão visual da palavra implica sensorial, impressiva, das palavras. A passagem diferentes modos de a perceber e em que se dedica a explicar as mudanças exercício de leitura convencional esquecemos o ocorridas no campo literário é, a nosso ver, suporte e a mancha tipográfica (a forma) para nos da máxima relevância, já que se verifica o concentrarmos no significado. Na poesia visual a recurso a um léxico mais facilmente associado qualidade pictórica e a espacialização do texto à teoria da pintura – “mancha”, “conjunto de no suporte são, pelo contrário, realçadas, pelo impressões”, “arte abstracta”, “figura/imagem” que devem ser também –, salientando a aproximação do textual ao que era anteriormente remetido para o domínio da A questão da leitura é, pois, essencial para arte pictórica. Hatherly explicará ainda que é a meditação sobre a relação entre os processos de percepção e a actividade mental que motivará os artistas a procurar outras direcções. Designadamente, a associação, feita pelos artistas do século ikon e logos . da importância das sensações (estímulos) suscitadas pelas formas e pelos materiais. Ou ler . No vistas/lidas e indagadas. Hatherly, que lhe dedicou vários parágrafos, incluindo um texto do já mencionado livro PO-EX - textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa (1981), intitulado “A reinvenção da leitura”. Essencial PORTFÓLIO 2 Este segundo ponto encontra eco no texto “O artista contemporâneo e os mass media ”, no qual Hatherly defende a necessidade de o artista contemporâneo assimi- lar os media, em particular a fotografia e o cinema, que “concretizam um máximo de ficção, pois são meios não-humanos de fixar o gesto instantâneo e reproduzi-lo infinitamente com rigor” (1981: 267).

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34 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS para compreender as distinções entre o escritora e pintora. experimentalismo, em particular aquele levado a cabo pela poeta, e a poesia concreta, este texto permite entender uma nova concepção de leitura, que a própria autora experimentou: enquanto exercício lúdico de decifração e reinvenção do texto imagem: Foi a partir dessa experiência da fragilidade da comunicação dos conteúdos dos textos [de escritas arcaicas] e da variedade possível de leitura das formas que desenvolvi a prática do texto-imagem, que simultaneamente transcende e engloba o problema do conteúdo ao nível do significado, alargando este para o que se poderia designar por um campo de significação integral , que seria o da não deliberação específica do seu conteúdo, sendo a sua única limitação a da forma gráfica. Com essa tentativa experimentava, por um lado, alargar o campo da leitura para fora da literalidade; por outro, alargar o campo criador da própria escrita, metafórica e factualmente, pois que chamando a atenção para a escrita como desenho ou pintura de signos (tornando-a ilegível para desalojar do hábito da leitura conteudística) estava tentando restituir a escrita à sua força original, semiótica, icónica, automaticamente semântica. (1981, 149) Forçando-se a “ler” línguas que não conhecia, “o meu trabalho também começa com a pintura” Hatherly descobre o potencial das formas e mostram como escrita e pintura convivem na começa a desenvolver uma prática pela qual reflexão e no trabalho plástico de Hatherly. pretende devolver a escrita à sua origem iconográfica. A autora procurará mostrar a É na medida em que entende a escrita escrita ao invés do escrito. Porém, como fica enquanto representação muda da fala, que claro neste excerto, tal gesto não significa o Hatherly pressupõe nela a dimensão pictórica, abandono ou a rejeição da semântica, antes evidenciada nas escritas ideográficas. Na um modo diferente de a trabalhar e dar a ver , tornando concomitantes o conceito e a suporte, as letras aparecem como formas ou imagem. Compreende-se assim a incidência na figuras geométricas. Daí que a autora mencione tematização da relação entre escrita e pintura. A a representação (mental-conceptual, visual- palavra é um signo pintado, e na qualidade de perceptiva) enquanto noção fundamental para pintura interpela os sentidos, designadamente a sua pesquisa artística. Na medida em que a visão, sem que isso signifique a ausência de o signo é a um só tempo conceito e imagem pensamento ou de significado. Por essa mesma (representação conceptual e imagética), escrita razão, Hatherly considera-se simultaneamente e pintura tornam-se indissociáveis. O meu trabalho começa com a escrita – sou um escritor que deriva para as artes visuais através da experimentação com a palavra. A Poesia Concreta foi um estádio necessário, mas mais importante ainda foi o estudo da escrita propriamente dita, impressa e manuscrita, especialmente a arcaica, chinesa e europeia. O meu trabalho também começa com a pintura – sou um pintor que deriva para a literatura através dum processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes, particularmente na nossa sociedade. Esta consciencialização tornou-se mais importante quando comecei a incorporar os media directamente no meu trabalho. O meu trabalho em geral diz respeito a uma investigação/ questionação do idioma artístico , particularmente do ponto de vista de representação – mental e visual. (1981, 265) A autora sublinha a qualidade ensaística e indagadora da sua prática artística, não circunscrita aos termos ‘literatura’ ou ‘artes plásticas’, mas participando de uma poética (poiesis) da experimentação, pela qual os limites entre as artes já não são discerníveis. As duas frases “O meu trabalho começa com a escrita” e página, no cartaz, na película, seja qual for o PORTFÓLIO

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35 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO É precisamente neste ponto que podemos convocar os seus exercícios cinematográficos, uma vez que neles se verificam a articulação e a execução de todas as ideias que até aqui fomos expondo. ESCRITA, PINTURA E CINEMA Durante os seus estudos na London Film School, Ana Hatherly levou a cabo alguns exercícios cinematográficos. Entre eles, os filmes de animação (por vezes, qualificados de abstractos), nos quais aparecem figuras geométricas, sofrendo metamorfoses sucessivas de formato e, nalguns casos, de cor. Se, conforme a afirmação da autora na entrevista acima citada, o cinema pressupõe uma relação especial entre escrita e imagem, como se pode a mesma verificar nestes filmes? Sublinhemos que, na mesma entrevista, Hatherly afirma que o desenho geométrico é a base da palavra escrita (ideia que remonta, pelo menos, ao Renascimento), pelo que podemos adivinhar que as figuras correspondem ou associam-se a letras percepcionadas enquanto formas. Como é comummente sabido, os pontos são os elementos base das figuras. A partir daí seguir-se-ão as linhas, os planos, e as secções cónicas, como elipses, círculos, e parábolas, já considerados figuras. Ora, é precisamente essa representação esquemática que podemos apreciar nos filmes de animação de Hatherly.

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36 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Fotogramas de Filme de Animação (1974) PORTFÓLIO

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37 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO

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38 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Contudo, ao aplicar pigmento, atribuindo matizes, tons e texturas aos desenhos, essas figuras da escrita passam a ser também formas da pintura ou manchas, evidenciando-se assim a origem pictórica comum, acima defendida. Já havíamos mostrado como para Hatherly há uma espécie de indistinção entre a forma da palavra, a sua qualidade ideogramática e a pintura. Esta ideia está patente nos trabalhos de Mapas da imaginação e da memória , de 1973, onde se assume inteiramente o trabalho simultâneo da escrita e da pintura. Conforme havíamos avançado, segundo a autora, uma e outra surgem do mesmo gesto ou têm uma mesma origem: a representação. A letra/palavra é representação da fala e, na qualidade de signo, é desde logo desenho/pintura. É preciso sublinhar que esta noção de representação nada tem que ver com a cópia figurativa dos objectos ou dos referentes. Dificilmente poderíamos compreender por que se convencionou associar alguns sons ao desenho da letra “A”. Partindo do código de signos já estabelecido (letras/ figuras geométricas), Hatherly propõe então a sua exploração plástica ou reinvenção, criando desse modo um jogo de formas e induzindo o espectador-leitor ao exercício lúdico de decifração. Em C.S.S. (Cut-Outs, Silk, Sand) (1974), esse jogo encontra-se evidenciado: da exposição da letra identificável passa-se à apresentação de sequências de padrões e figuras geométricas coloridas. PORTFÓLIO Fotogramas de C.S.S. (Cut-Outs, Silk, Sand) (1974)

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39 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Mapas da Imaginação e da Memória (1973)

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40 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Acontece que essas figuras/padrões alternam Com alguma facilidade se associará o gesto e transfiguram-se. Há uma sequencialidade implícito em “Leonorana” às animações de similar ao encadeamento frásico. Lemos os Hatherly, onde se assiste à transmutação de umas filmes de Hatherly, lemos as figuras pintadas formas em outras ou a propostas variadas de e lemos a geometria da escrita. Este exercício visualidade das figuras. Nos dois casos verifica- já se encontrava patente noutras obras, sob o se ainda a sequencialidade das imagens, título “Variações” (termo musical, sublinhe-se). resultante do trabalho de corte, recorte, colagem É o caso do trabalho intitulado “Leonorana”, um e de montagem ( conjunto de textos-imagem cujo ponto de partida espectador-leitor vê-se impelido a acompanhar é o poema de Camões “Leonor”. A sequência a cadência e a fazer a sua leitura criativa do tem início num texto corrido. Gradualmente, exercício da permutação e da combinatória. os textos vão ficando mais rarefeitos, para No livro, virando as páginas e acompanhando a ganharem novos contornos formais, ao ponto de ordem de aparecimento das imagens; no filme, se aproximarem do geométrico ou da pincelada, assistindo à passagem rápida dos fotogramas. como acontece, por exemplo, nas variações XVIII e XX. cut-outs, silk and sand ). O PORTFÓLIO

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41 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS A sequencialidade acelerada e a consequente ilusão de movimento do cinema parecem interessar à autora, pois através deles pode produzir ou realçar modos de ver os signos escritos pintados. Desde logo, o dispositivo fílmico exibe a interferência de uns signos sobre os outros, já que a sucessão veloz das imagens resulta não só na impressão de metamorfose como também na sobreposição de planos, isto é, nas camadas imagéticas. Assim sendo, é possível falar-se de signos-pinturas intersticiais originados pela cadência e pela velocidade. A sucessão e justaposição das imagens exprime, portanto, o que não existia em nenhum dos planos ou figuras separadamente; criam um efeito quase alucinatório, pelo qual o espectador (a sua percepção) se torna elemento fundamental no processo de construção das figuras. Quem olha interfere no que é olhado; quem lê reinventa o lido. Por outras palavras, o dispositivo fílmico torna manifesto um conjunto de operações específicas da leitura: ver, decifrar, imaginar, reescrever. Nessa medida, o recurso ao cinema é duplamente importante, pois permite a exploração tanto das imagens materializadas na película quanto das imagens virtuais (mentais). Percebemos, assim, de que modo o cinema, na qualidade de arte das imagens em movimento, pode contribuir para a reflexão e para a prática de uma escrita visual. Exibindo-a como escrita móvel, pintura em contínua transmutação (metamorfose), que vista, lida e imaginada proporciona novas apreciações estéticas, sensoriais e cognitivas do literário, ou melhor, do poético. VÍDEO: Universidade Aberta - Entre Nós [Em linha]: entrevista a Ana Hatherly. Realização de Guilherme Piedade; Tecnólogo Vítor Almeida. Lisboa: Universidade Aberta, [2003]. 1 prog. vídeo (31 min., 50 seg.): https://vimeo.com/user34119652/ review/156836948/fca7eb0b35 BIBLIOGRAFIA CRESPO, N. (2017). “ Language! It’s a vírus! Palavras e imagens em Ana Hatherly” in Ofício Múltiplo- Poetas em outras artes. Org. FRIAS, J. M. et al. Porto: Edições Afrontamento. HATHERLY, A. (1979). O Espaço Crítico – do simbolismo à vanguarda. Lisboa: Caminho. ______________, CASTRO, E.M. de Melo e. (1981). PO-EX – Textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editores. ______________ (1985). “Perspectivas da poesia visual: Reinventar o Futuro” in Poemografias – Perspectivas da poesia visual portuguesa. Lisboa: Ulmeiro. ______________ (2001). Um Calculador de Improbabilidades. Lisboa: Quimera. SOUSA, J. P. de. (2018). “A contemporaneidade disruptiva do desenho-escrito de Ana Hatherly” in Ana Hatherly – O Prodígio da Experiência (Catálogo). Almada: Casa da Cerca. PORTFÓLIO

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43 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Hatherly emprega a linguagem da electrónica digital para encontrar uma definição do poeta, criador de metáforas – processo de substituição em que um termo é substituído por outro, o que, no fundo, significa transposição. Este conceito não pode ser dissociado, porém, da imagem gráfica de um codificador e de um descodificador que se assemelham aos quadrados mágicos, como o que surge em A Melancolia , de Dürer, com ligações expressas à alquimia e à astrologia. O trabalho poético-visual que Ana Hatherly nos legou acompanha a história das ideias, das religiões, da mística e das artes, não só no sentido de uma erudição, mas de uma praxis conhecedora da pansemiótica cabalística, da arte combinatória e seus aspectos permutacionais, algo ao qual o conhecimento aprofundado do universo musical da ensaísta acrescenta mais do que o óbvio. Tenha-se em atenção a formação adquirida pela poeta nesse âmbito na Alemanha e em Portugal, também no domínio do canto: “(Eu estudei muito seriamente música, sobretudo nos aspectos da composição e desse estudo me ficou o gosto pelo rigor e uma entranhada disciplina que, por exemplo, nas Rilkeanas 4 , se pode ver claramente. Mas em outras obras também. E até Não importa aqui reflectir sobre a importância da história da escrita e do número no percurso de Ana Hatherly, nem analisar os processos de aquisição de conhecimento pela investigadora nestes domínios. Sabemos que empreendeu, na área, aquilo que chamou de «pesquisa sistemá- tica», algo que a sua mão inteligente dá a ver na introdução a Mapas da Imaginação e da Memó- ria (HATHERLY, 73: 5-9) e em outros textos. Num artigo publicado, em 1967, no jornal Diário Po- pular , transcrito posteriormente em Obrigatório não Ver (HATHERLY, 2009: 98), a ensaísta define o poeta como «um eficaz calculador de im- probabilidades», considerando-o um criador e transmissor de mensagens: “a ele cabe de- sempenhar uma importante função como co- dificador e descodificador”, algo que Herber- to Helder, de algum modo, reforça no posfácio a Electrònicolírica 3 , no qual afirma que «o prin- cípio combinatório» pode entender-se como “a base linguística da criação poética” (HELDER, 1964: 50). Estamos, para a autora, perante uma concepção da escrita enquanto circuito que transforma a informação contida nas palavras noutra coisa a utilizar pelo leitor de um outro modo. Ana PORTFÓLIO Anagregoriana 1 ANA MARQUES GASTÃO 2 1 Agradecemos à Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento a autorização para a reprodução das peças de Ana Hatherley. 2 Poeta e ensaísta. 3 Renomeado A Máquina Lírica . 4 O livro acabou por intitular-se Rilkeana.

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44 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS no meu comportamento em geral.” (HATHERLY, entre os vários elementos – sobretudo o ar (o 5 2004:126-127). Entenda-se cabala, não só enquanto doutrina (HATHERLY, 1973) e, noutros momentos, como constituída por uma metafísica, uma mística e uma sequência de ondas sonoras. Os sons uma exegese de natureza esotérica, mas também naturais são combinações de sinais, constituindo como técnica de leitura e de interpretação do a escrita uma forma de no-ta-ção geradora de texto sagrado, olhando ao estabelecimento arquétipos. de critérios metodológicos, nomeadamente por meio da combinatória a que chamaremos Publicado primeiro na revista cósmica. A música deverá ser compreendida, depois, em neste contexto, no enquadramento experimental alfabeto estrutural de Ana Hatherly, fundado em que possui, sabendo nós que tem como matéria- prima o som, seus parâmetros e meios de tem, na visão da artista, valor metafórico propagação: a notação é, aliás, constituída por um graças ao seu valor sinalético, semiológico e conjunto de sinais gráficos que simbolizam uma icónico. Na verdade, o ritmo transmitido no cadência de sons. Nestes aspectos, cabalístico e traçado vai do concreto ao abstracto, usando composicional, assenta o misticismo linguístico a regra enquanto instituição didáctica, mas a da escritora. Ana Hatherly era conhecedora dos qualificação abstracta utilizada para estes textos estudos de Isaac el Ciego, Abraham Aboulafia, visuais – que não incluem apenas um modelo Joseph Gikatilla, Moisés Cordovero, Isaac Louria de escrita conceptual – só se compreende a e dos autores da cabala cristã que os seguiram partir do seu porte teórico, místico e musical. na demanda do conhecimento do mundo e seus Ou seja: estes desenhos-escrita emergem, na mistérios, a partir de uma ideia fundada na acepção benjamiana, do processo do seu devir e crença num Deus infinito, o Único Coroado ( Ein- Sof ). O texto-desenho na sua obra deve merecer impulso inventor. Se o remoinho da mão – que uma aproximação hermenêutica que o tenha risca incessantemente, com diversas variantes, em conta como parte integrante de um sistema e se dá a ouvir – é algo infindo em os sígnico a estudar de modos múltiplos e também em geral, nos poemas-imagem de Ana Hatherly , enquanto pulsão de um corpo em movimento algo nos confirma o movimento de meditação sopro), que tem uma velocidade. Podemos 6 lê-lo em Mapas da Imaginação e da Memória OPERAÇÃO1 7 e, Mapas da Imaginação e da Memória , o 8 oito caracteres e segundo a ideia de anagrama, desaparecer no espaço (BENJAMIN, 2004: 32), de um imperativo gráfico acompanhado por uma diluição da estrutura criada no papel e de um Mapas e, 9 PORTFÓLIO 5 Carta a Elfriede Engelmeier – tradutora para alemão de Ana Hatherly – sobre a génese de Rilkeana. 6 Ler Ana Soberana ou LER NO AR , de Maria Filomena Molder, pp. 67-78, in catálogo da exposição Ana Hatherly: Território Anagramático, Anagrammatic Territory , com curadoria de João Silvério, e textos de João Silvério, Maria Filomena Molder, Fernando Aguiar e Andreia Poças, Lisboa, Documenta/Fundação Carmona e Costa, 2017. Acrescente-se, como curiosidade, que, no canto gregoriano, neumas – sinais derivados da gramática grega que não indicavam com precisão as notas, mas ajudavam os cantores –, significavam «ar» em grego. 7 O título Operação 1 (1967), org. de Ernesto de Melo e Castro, contém cartazes de António Aragão, Alfabeto Estrutural de Ana Hatherly; 10 sintagramas de E. M. de Melo e Castro; 9 homeóstatos de José Alberto Marques; 4 epithalamia de Pedro Xisto. A capa é de João Vieira. Consultar Arquivo Digital da PO.EX: https://po-ex.net/ 8 Ler Ana Plurinímica , artigo, considerado ainda um esboço de ensaio, mas no qual se procede à decifração do alfabeto estrutural criado por Ana Hatherly a partir do tetragrama: http://www.acad-ciencias.pt/document-uploads/4900851_ana-marques-gastao---ana-plurinimica.pdf.

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45 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS discursiva que parte da concentração, da se este se tratasse de um código genético da montagem de elementos, da sua recolocação, vida, espécie de ADN, cujos segmentos se repro- composição e de uma arquitectura cinemática duzem nalguns desenhos. que cartografa um território pela proliferação de “operações” a partir de uma espécie de A grafia da letra, ou o traçado da mesma, diagrama pré-estabelecido. Os oito caracteres organizam-se, de facto, em es- truturas, abertas e fechadas, que se transformam da estética experimental, ajuda-nos a percorrer numa colecção de itens interrelacionados (em o roteiro-labirinto, alertando-nos para o facto de torno dos 72 Nomes de Deus ) e correspondem que, segundo a tradição cabalística, do ponto 10 a ritmos, vocalizações invisíveis e laudatórias e a ( uma forma de rearmonização genérica de vibra- ções vitais transformadoras da energia semân- tica. Poderíamos chamar «redes» às estruturas esquema de variações/combinações de ordem – também no sentido mais estrito do termo – ou gráfica e musical análoga à do alfabeto. 11 grelhas, módulos operadores, como os dos com- putadores, capazes de partilhar comunicação, que conectam elos semióticos e gestuais. Não por acaso, o compositor John Cage considera a arte como “uma rede nos seus modos de ope- ração” em entrevista transcrita por Ana Hather- ly (HATHERLY, 2009: 125). Estamos perante uma heterogeneidade de fios de Ariadne, diante de um trabalho de tecelão, como lhe chama Jünger (DELEUZE e GUATTARI, 2006: 19), alfa e ómega em simulacro, tão genesíaco quanto apocalípti- co, que usa o alfabeto hebraico (e outros ) como pintor, primeiro com a dança, a escultura e a 12 enriquecem o simbolismo interpretativo. O método de Kandinsky, a cuja linhagem Ana Hatherly pertence, se nos situarmos no âmbito Yod , a primeira letra do nome de Deus, matéria primeira) nasce outro ser, a linha (KANDINSKY, 1996: 35-58), o que permite a criação de um Leia-se Kandinsky: É particularmente interessante e significativo que a actual representação músico-gráfica – a escrita musical – mais não seja do que diversas combinações de pontos e de linhas. Todavia, a duração apenas é legível pela cor do ponto (somente branco e preto , o que leva a uma restrição de 13 meios) e pelo número das colcheias (linhas). Do mesmo modo, a altura do som mede-se pelas linhas, de forma que lhe servem de base cinco linhas horizontais (KANDINSKY, 1996: 98) . 14 Mais à frente, a analogia musical é feita pelo PORTFÓLIO 9 Oiça-se o som da mão no filme A Mão Inteligente , de Luís Alves de Matos (2002, 41 mn.). Articule-se o conceito de «mão inteligente» de Ana Hatherly com a tradução para francês deste versículo da Bíblia, que me parece ser a mais adequada: «C’est par un écrit de sa main , dit David, que l’Eternel m’a donné l’ intelligence de tout cela, de tous les ouvrages de ce modèle.» (1 Chroniques 28: 19). http://saintebible.com/1_chronicles/28-11.htm. Última consulta 8/07/2018. Itálicos meus. 10 O número dos nomes de Deus, 72, é obtido pela adição das 50 portas da compreensão às 22 letras do alfabeto hebraico. O valor de nome de Deus, YHVH (Yod-Hé- Vav-Hé), do ponto de vista da gematria, é igual a 26. Adicionando 2+6, obtemos 8, a quantidade de caracteres do alfabeto estrutural. Oito era também o primeiro cubo real para os pitagóricos que o ligavam à Harmonia e a Eros. Oito são as horas canónicas do dia – conjunto de orações e de salmos aos quais se junta, em certos casos, a Missa. Cada um dos ofícios diferentes é composto por sete ou oito horas (as de Nossa Senhora, texto principal dos livros de devoção, as do Espírito Santo, as da Cruz e as de Finados). O Ofício Menor evoca os oito momentos cruciais da vida da Virgem. Ler Ana Plurinímica (v. nota 6). 11 Ver a série notável de redes em Mapas da Imaginação e da Memória , aludindo às pescas milagrosas dos Evangelhos, à pesca dos 153 peixes de João (João 21: 1-14) ou à visão dos discípulos como pescadores de homens (Mateus 4: 13-22; Marcos: 16-20; Lucas: 5: 1-11). A camisa do pescador que Ana Hatherly veste na performan- ce -filme Rotura entrelaça-se com esta simbologia. O elemento água conjuga-se com o do ar. A cesta alude ao pão, o escadote à deposição, a boina é a do pintor, o artista que dá a ver. Muitos mais elementos cenográficos possibilitam outras interpretações, como a do rompimento violento do papel em alusão ao rasgar do véu do templo no momento da morte de Cristo, mascarada de intervenção política sem a repudiar. O que AH dava com uma mão, escondia com a outra; as peças do puzzle estão, todavia, representadas com grande veemência. 12 Por exemplo, o «alfabeto utópico», segundo a gravura de Holbein na obra Utopia , de Tomás Moro (1516), a que se refere E.M. de Melo e Castro in «(H)A VER ANA HATHERLY. Notas sobre a Poesia Visual» (HATHERLY, 1992: 95-104). O utopiano é constituído por 22 letras baseadas nas formas do círculo, quadrado e triângulo. 13 O preto e branco são utilizados obsessivamente por Ana Hatherly. Sublinhados meus. 14 Guido D’Arezzo criou um sistema de notação musical com quatro linhas, o tetragrama. A partir dele, surgiu a pauta musical de cinco linhas, o pentagrama.

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46 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS arquitectura, desenhadoras de linhas, e depois Ana Hatherly ultrapassa este pressuposto. Não com a escrita poética e seus cromatismos: A criação ritmada do poema encontra a sua expressão nas linhas rectas e curvas e a sua alternância lógica desenha-se com uma precisão gráfica dentro da métrica poética. Fora das medidas ritmadas, que são precisas, o poema ganha, através da recitação, uma linha melódica musical que exprime de uma maneira instável e variável o crescendo e decrescendo , a tensão e o repouso (99). No caso do desenho-escrita de Ana Hatherly verifica-se o mesmo, tanto do ponto de vista musical como poético, sendo a harmonia , 15 mesmo no caos, uma constante. Claro que estas conglomerações de sons e enlaces podem criar Atente-se aos jogos de opostos sequenciais, estruturas complexas, bem como as chamadas bem como ao seu entrelaçamento imagético, à consonâncias e dissonâncias. A sobreposição importância que Ana Hatherly dá ao silêncio, na leitura cabalística da escrita é também um aos intervalos, ao acto de repetição do traço, dado potencialmente relevante que a poeta do gesto, algo a estudar na perspectiva da utiliza até à exaustão. Observem-se, nas imagens psicanálise. Antes de penetrar no terreno da reproduzidas abaixo , os desenvolvimentos interpretação, o leitor pode tentar compreender 16 iniciais das estruturas do alfabeto de Ana o alfabeto de Ana Hatherly no entrecruzamento Hatherly, que partem depois para uma coisa de portas/janelas/escadas/escalas, e a partir outra. Muito na sua obra tem influências da das metamorfoses dessas forças energéticas, 17 ornamentação, do virtuosismo e da improvisação tendo como base o tetragrama (YHVH – Yod- características do Barroco, da música experimental ou da mera representação do som, saída do caos, nas suas diversas acepções – da por exemplo de um fenómeno atmosférico. As teoria matemática à mitologia e à cosmogonia, técnicas composicionais do dodecafonismo não reproduzida no texto-visual –, pode entender-se são muito diversas da arte combinatória: as notas a partir do que escreve, de modo exímio, José Gil, da série podem ser transformadas em melodias não sem analisar previamente os mecanismos ou acordes, respeitando a sua posição dentro da de desestruturação da consciência: sequência. só trabalha as estruturas de maneiras diferentes – vertical, horizontal, de trás para a frente, da frente para trás, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda – como as desarruma, desmancha ou dilui, indo mesmo quase até ao desaparecimento das mesmas. Se tentarmos, por outro lado, substituir as letras nos poemas por quadrados pequenos e materializarmos o lugar das notas sobre linhas paralelas e entre linhas invisíveis, descobriremos a pauta em vários momentos do seu percurso. 18 Hé-Vav-Hé), Nome de Deus em movimento. A PORTFÓLIO 15 A harmonia, que surge dos gregos, define-se pela concordância ou combinação de vários sons simultâneos. A melodia combina sons sucessivos. O conceito de harmonia das esferas pertence aos pitagóricos e assenta na conciliação entre opostos, ordem e caos. 16 Todos os desenhos de Ana Hatherly reproduzidos neste ensaio pertencem à colecção da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento em depósito na Fundação de Serralves. Para uma visão mais completa do alfabeto, aceda-se aos sites: http://www.flad.pt/coleccao-de-arte/ e https://poex.net/taxonomia/materialidades/ planograficas/ana-hatherly-operacao-1-alfabeto-estrutural/in Arquivo Digital da PO.EX. Última consulta a 8/07/2018. 17 Relembrem-se O Escritor, A Reinvenção da Leitura e Escrita Natural. 18 Os intervalos são diferenças de altura entre notas.

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47 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS O que o artista faz, quando é atraído pelo caos [o do inconsciente] e dele se aproxima, é guardar um resíduo de força e nexo consciente ao qual se possa agarrar, olhando para o caos que aí vem. De resto, o que fez foi aproveitar o próprio movimento de desestruturação, extraindo a força que lhe dá continuidade para instalar outro regime de forças. Este será um regime rítmico . Transforma-se o movimento das forças caóticas em ritmo. (GIL, 2018: 293-298) Esta forma de escrita e de experiência meditativa ritmada estiliza elementos como o 19 ponto, a linha e o plano, torna possível viver no espaço do Nome. Ler aqui o que não são letras senão em desvio, mas signos/ícones, torna-se numa dinâmica que representa a passagem de uma estrutura a outra, que desliza suavemente, sem asperezas. O ponto ínfimo, indivisível, 20 enquanto concentração estática de energia, coloca-se em movimento para que nasça a linha (do mundo?) e o que se lhe segue, primeira nota de um big bang poético-musical. É o ritmo que cria a continuidade do traço, como nos lembra Klee: as formas nascem da matéria, toscas, arcaicas, dando a ver a potencialidade do mínimo . Relembrem-se as palavras de Olivier 21 Messiaen, citadas por Ronald Blogue: Suponham que havia uma única batida em todo o universo. Uma batida; com a eternidade antes dela e a eternidade depois dela. Um antes e um depois. É isso o nascimento do tempo. Imaginem, quase imediatamente depois, uma segunda batida. Porque qualquer batida [o ponto genesíaco, o início] será mais longa do que a primeira. Outro número, outra duração. É isso o nascimento do Ritmo. (BLOGUE, 2003: 25). Observem-se agora as primeiras imagens e sequências do alfabeto às quais se sucedem possibilidades combinatórias múltiplas. PORTFÓLIO 19 O primeiro livro de Ana Hatherly, Um Ritmo Perdido (1959), já denunciava a dimensão musical da obra. 20 Associada ao ponto, a letra Yod , a décima do alfabeto hebraico, significa «mão». 21 Yod, que define a potência criadora, remete-nos para a pequenez da condição humana e para a virtude da humildade.

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48 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig 1. Estrutura inicial do alfabeto estrutural de Ana Hatherly e variantes abertas (FLAD, inv. 490)

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49 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig. 2. Variantes fechadas do alfabeto (Inv. 491)

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50 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig. 3. Exemplo de combinações do alfabeto (Inv. 366)

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51 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS O movimento da mão pratica as combinações de caso, da cultura no domínio do simbolismo e letras do Nome e das palavras da Tora, ocultando- as num quase apagamento ou dissolução. desenhos-poema, como lhes quisermos chamar, Vemo-las gerar uma música silenciosa, na qual incluídos nesta obra, tem um as letras, como as notas, são um elemento de um canto mudo (sucedâneo da voz de soprano condução energético. Ana Hatherly não só sabia que a doença lhe roubou ), aproximando-se que na cabala o ser humano é um instrumento da notação musical e coreográfica. “A escrita verbal (e musical), como entendeu com clareza é muda” (mutilada porque já sem voz), para a a importância do som no Barroco, tela alterna escritora, e “o texto (…) uma forma de significado de muito do seu trabalho ensaístico e criativo, originalmente veiculado pelo som, som que a algo sublinhado por Walter Benjamin ao afirmar escrita oblitera”. De algum modo, dir-se-ia, que “o reino da significação é a palavra escrita” por razões autobiográficas, canto/movimento (BENJAMIN, 2004: 230). A autora nunca abdicou, transferido. Não deixa de ser fala silenciosa, porém, do fascínio pela ilegibilidade deliberada acto individual (e de paradoxal entendimento), – o importante era dar a ver a escrita enquanto que emana do corpo, entendido como árvore da objecto, e não o escrito, forçando novas leituras vida, e cuja leitura «exige muitas vozes, muitos mágicas –, e assimilou a herança hebraica do ouvidos, muitos olhos» (HATHERLY, 2004: 95). 22 teamim ou da cantilena, ritual usado no canto É com os ouvidos que se lê a maior parte dos de leituras da Bíblia hebraica (Tanakh) durante poemas visuais de Ana Hatherly, por exemplo as cerimónias litúrgicas da sinagoga. Quis, os dos afinal, dar a ler uma arquitectura estrutural – constituída por pontos, linhas, planos, sons, poemas-dança, que nos fazem concluir não haver coloraturas, reveladoras de uma vivência mística escrita sem movimento entrecruzado, em jogo – transmitida pelo trajecto no espaço da letra- desenho, de ritmo livre, sem compasso, como no São canto gregoriano. Nessa senda, a poeta criou, sobretudo nos Mapas , combinadas. Veja-se como Ana Hatherly, mas não só, um pensamento-visual estruturado e em também um pensamento-som – este ligado a uma composicional de Cage: audição por si percepcionada, como acontece a um compositor –, que vivem da estimulação da imaginação, da animação do silêncio, e, no seu da alquimia. O conjunto de textos visuais, ou 23 grito próprio, institui 24 25 Mapas da Imaginação e da Memória , de Leonorana ou de Joyciana . São poemas-som, de xadrez com algo de experiência científica. combine-drawings , parafraseando a expressão de Rauschenberg, combine-paintings (HATHERLY, 2009: 123) formas/fórmulas Obrigatório não Ver , comenta o processo Aquilo a que poderemos chamar a “partitura” da Cartridge Music consiste em algumas folhas de papel em que estão inscritas linhas e alguns desenhos, os quais, sobrepostos uns PORTFÓLIO 22 Sublinhados meus. A compreensão do «escrito» é leitura pessoal e transmissível apenas de modo iniciático. 23 A orelha filtra o ar, símbolo do sopro divino. O labirinto, órgão central do ouvido interno, é também, e de modo alusivo, uma das temáticas centrais na obra de Ana Hatherly. Outras das componentes do ouvido, nomeadamente, o martelo, remetem-nos para as ferramentas do ferreiro (alquimista). A orelha de Buda escutou o som primordial. 24 Problemas de sáude impediram Ana Hatherly de seguir uma carreira musical. Ler « Questões de criatividade » (HATHERLY, 2004: 91-97), bem como o ensaio de Catherine Dumas « La vibration perdue Autour d’une esthétique du son chez Ana Hatherly (Espacio/Espaço Escrito, Revista de literatura en dos lenguas ». , introd. de Perfecto E. Cuadrado, nº 25 e 26, Badajoz, 2005/2006). 25 Para Meschonnic, «a voz é o que desaparece no escrito» (MESCHONNIC, 2009: 660), o que estabelece um diálogo perfeito entre ambos os autores.

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52 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Fig 4. Manuscritos de Cage, o primeiro de Catridge Music PORTFÓLIO aos outros, formam um esquema que o executante interpreta segundo um código por ele estabelecido, ou seja livremente combina as indicações para formar um todo homogéneo em que até a extensão de tempo é determinada (idem). Este quase auto-texto pode aplicar-se à poeta- artista na sua vocação experimental.

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53 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig. 5. Exemplo de notação coreográfica barroca. As suites eram, por exemplo, constituídas por allemandes, courantes, sarabandas e gigas 26 Trata-se de uma forma de representação da gestualidade da dança por meio de símbolos, paralela à criação de uma partitura. Na imagem seguinte, encontramos um exemplo formas moventes de notação com incidência no de notação coreográfica barroca reinventado Barroco. A consistência orgânica é semelhante, 26 pela autora em Mapas. Trata-se de uma forma mas a configuração contemporânea e livre. O de grafar o movimento. É a escrita, enquanto movimento do corpo transforma-se em desenho processo, que interessa à investigadora. Veja- se como no desenho da Fig. 6 se glosam do instante; é sempre uma combinação de forças. a partir de uma gramática do gesto valorizadora

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54 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig 6. Desenho de Ana Hatherly, incluído em Mapas da Imaginação e da Memória . A liberdade da mão contemporânea tem em si um passado, uma tradição, e parafraseia a notação das danças do Barroco

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55 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS De facto, as letras desmancham-se, mas mantêm- se na página em fragmentos de palavras ou em artista transmuta no papel. Entenda-se aqui o palavras desfeitas e quase ilegíveis, aludindo à conceito de “mão inteligente” como veículo de temática do labirinto. A arquitectura e a dança um pensamento sublime, algo explicado pelo não deixam de ser formas de visualizar a música, pensamento hermético. como no Barroco, e é esta última arte que, paralelamente à escrita e ao desenho, domina No regresso de expedições número-etnográficas na obra da autora de O Mestre . Ana Hatherly e alfabético-arqueológicas, e consciente de quis conceber uma biblioteca-áudio de uma que a invenção do alfabeto, enquanto forma outra sinfonia das harmonias celestes como a superior de traslado da palavra, marcou de de Hildegarda de Bingen, que criou uma língua forma inigualável a história das civilizações, Ana secreta ( Lingua ignota ) com uma listagem de Hatherly constrói imagens, figurações exteriores novecentos vocábulos a partir de um alfabeto entre língua e palavra, palavra e escrita, música e de 23 caracteres, sobrevindos na margem das dança, usando coordenadas multidimensionais, partituras de Kyrie e da peça intitulada O virga mediatrix . A antena 68, 27 O orzchis Ecclesia , é o dentro e um fora”, interior e exterior (DERRIDA: único texto que utiliza na totalidade esse idioma 2006, 53). De forma abstractamente visual, vai ensinado, por solidariedade mística, às monjas trabalhando parâmetros físico-musicais como do Mosteiro beneditino de Rupertsberg, em a altura, a duração, a dinâmica/intensidade, o Bingen am Rhein, na Alemanha. As peças da Symphonia foram escritas para trabalho arqueomusicológico e não somente enriquecimento do repertório dos ofícios escritural ou do domínio das Belas-Artes. divinos e reagrupam antenas, antífonas, salmodias, hinos, sequências. Hatherly não Se bem que a ordenação das componentes do criou, como Hildegarda, uma língua, mas um alfabeto estrutural não possa ser comparada alfabeto, colocando-nos não perante uma à dos elementos de uma escala diatónica transcrição – pois o movimento da mão também é improvisatório –, mas uma retranscrição de um outro concerto celeste em que audição, fala) baseia-se, do ponto de vista imagético, visão e tacto se completam. Em muitos casos, num processo combinatório arbitrário paralelo o desenho reproduz, transfigurando, imagens ao da composição musical, ora no modo como as de um eletroencefalograma, um gregoriano, ora recorrendo às características electrocardiograma, uma arteriografia, ou uma essenciais do Barroco, como o baixo-contínuo representação de ondas sonoras. A linguagem (que usa cifras), o contraponto ou a harmonia científica esfria a dose de amargura que a 28 29 movendo-se entre o que Derrida apelida “um timbre, a articulação e o andamento, ou plásticos, que engendram formas, géneros e estilos de um tout court , como a artista sublinha no prefácio de Mapas , este tipo de escrita (que se diz ou se PORTFÓLIO 27 Codex 1016 da Biblioteca Nacional de Viena. 28 Por vezes, a de uma fisiologia experimental, ou química. 29 Articule-se o conceito de «mão inteligente» de Ana Hatherly com a tradução para francês deste versículo da Bíblia, que me parece ser a mais adequada: «C’est par un écrit de sa main , dit David, que l’Eternel m’a donné l’ intelligence de tout cela, de tous les ouvrages de ce modèle.» (1 Chroniques 28: 19). http://saintebible. com/1_chronicles/28-11.htm. Última consulta 8/07/2018. Itálicos meus.

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56 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS tonal. Noutros momentos, segue, como outros vão estabelecendo combinações (até 72). Estas experimentalistas, o modelo atonal, introduzindo propõem-se unir esses princípios e formar elementos geradores de uma casualidade, proposições do género: “A Bondade é grande”, seleccionando dados, executando programas “a Grandeza é gloriosa”, etc. Este mecanismo como um computador, não se alheando da de organização da realidade, aparentemente tradição matemático-musical dos pitagóricos lúdico, que Ana Hatherly herdou, torna-se – que concebiam a música como uma ciência móvel a partir de três círculos concêntricos e numérica –, nem da cabala dos nomes divinos. reduz-se a nada sem o dom da fé e os princípios O jogo no ser humano provoca reacções que da cosmologia bem ordenada; só eles podem permitem aceder ao imponderável. Mais do que a língua, interessou-lhe a escrita, de instruções para executar uma função –, cujos estado que lhe é posterior, integrada num termos o filósofo/teólogo recuperou dos árabes sistema disciplinado e rígido, herdado da ou de textos do neoplatonismo medieval . música, mas também em constante mudança no cruzamento entre diversas culturas. Ana Relembre-se que, no Hatherly não empreendeu um projecto de língua abordava-se a partir da ideia de roda, forma filosófica, adquiriu um conhecimento gestual da que percorre, de um modo ou de outro, a obra escrita, mesmo sem a entender (caso do chinês hatherlyana, nomeadamente em arcaico), mas, à semelhança de Llul, que parte acontece na língua mágica de Dee – que criou de uma tabula generalis , usando um alfabeto um alfabeto geométrico-visual na de nove letras, pisou o terreno da combinatória matemática, dele recebendo, embora de forma Kircher. Há parelelismos imagéticos evidentes. trasvestida, a utopia de uma concórdia universal Investigam-se, deste modo, pela combinatória, partilhada por Roger Bacon, Giordano Bruno e tantas vezes, em círculo ou em espiral, numa – centrado na importância do conceito de espécie de configuração cósmica, os anagramas ideia-figura – e por Nicolau de Cusa que, em de uma palavra a exemplo das permutações A Douta Ignorância , traça os princípios de uma de outra, caso de ROMA: AMOR; MORA, ROMÃ, hermenêutica dos nomes divinos (CUSA, 2003). Llul evoca no seu alfabeto lulliano os nove Ana Hatherly investigou-os a fundo. A invenção princípios absolutos, chamados «dignidades da escrita em si mesma, e depois a do alfabeto divinas», aceites pelas três religiões monoteístas, são, na verdade, formas de criação textuais que comunicam entre si, e o cosmos, a combinatórias que a escritora, também a sua natureza, expandindo na criação nove partir do princípios relativos, nove tipos de questões, nomeadamente a nove sujeitos, nove virtudes e nove vícios que (1666), estudou e reinventou usando amiúde moderar os excessos deste jogo lógico – em que o algoritmo se impõe enquanto sequência 30 Sefer Yetsira , a combinatória Mapas , como Monas Hieroglyphica –, ou na Ars magna sciendi , de RAMO, etc. Múltiplas formas de escrita visual utilizaram, na verdade, processos combinatórios. I Ching e dos estudos de Leibniz, Dissertatio de Ars Combinatoria PORTFÓLIO 30 Como os comentários ao Pseudo-Dionísio.

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57 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS a variação , forma de música instrumental ou «A variação e a metamorfose correspondem 31 vocal, em que se tira partido de um determinado a esse regime de mutação contínua que é por tema, eventualmente alargando-o, ou se usa excelência o da música» , como salienta Vladimir recursos de metamorfose que podem ir até ao Jankélevitch (JANKÉLÉVITCH, 1983: 119), o que emprego abundante de ornamentos melódicos, não constitui uma mera caligrafia projectada no à imitação criativa de um mote, ou à modulação. espaço, mas reproduz uma vivência existencial Como sublinha Alain, a variação recompõe um transfigurada, a exemplo do que acontece na canto silencioso e «há sempre traços de amizade operação poética. A alternância entre a linha e nas mais belas variações» (ALAIN, 2014: 126- 129). A artista colheu e desenvolveu a premissa fig. 1), constante no desenho de clássica de que os textos eram pensados para e provém do canto gregoriano – que segue a serem lidos em voz alta: a leitura é antes de mais ordem dos oito sons salmódicos –, havendo, no auditiva e preside ao trabalho de Ana Hatherly, entanto, influência no traço de diversos tipos ainda que de modo oblíquo, pois são o desenho de notação, designadamente de raiz oriental, e a construção poética que nos conduzem de como a coral bizantina, e das escritas românicas, modo alusivo ao som. Escreve Ana Hatherly a Elfriede Engelmayer a uma leitura comparada entre os poemas-visuais propósito da opção pela variação: A ideia de ‘variação’ tem origem na minha formação musical e, de certo modo, na tristeza que eu tenho de não ter podido seguir uma carreira como cantora lírica da música espiritual do Barroco. As Paixões , de J. S. Bach e em geral a música dessa época, que estudei na Alemanha, são pilares essenciais na formação da minha sensibilidade. Mozart, Schubert, Haydn, e, é, claro, Beethoven (cuja biografia eu li na minha juventude, banhada em lágrimas) têm um lugar importante. Mahler só veio muito mais tarde. Schönberg, Berg, Webern completaram o leque da minha sensibilidade musical (…) (HATHERLY, 2004: 126-127). 32 o ponto (observe-se os manuscritos de Cage na Mapas , é nítida arábicas, cirílicas, helénicas, hindus, coptas, etc. Estamos perante oração/leitura cantada. Faça-se de Ana Hatherly, que beneficiaram do estudo e prática da escrita cursiva, e os seguintes excertos do Pater Noster , do Kyrie Eléison ou do Salve Regina , não nos deixando prender a uma ortodoxia religiosa que a poeta recusava: PORTFÓLIO 31 Leia-se sobre a reapropriação literária e visual do género do tema e variações, o ensaio de Ana Paixão, La tessiture du temps. La musique des textes de Ana Hatherly. https://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/81/68. Última consulta (28/06/2018) 32 Tradução minha

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58 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Figs. 7, 8 e 9. Notação de canto gregoriano

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59 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig. 11. Desenho de Ana Hatherly in Mapas da Imaginação e da Memória com uma clara influência de Kandinsky na utilização do ponto, que percorre, ritmado, muitos desenhos da artista Fig. 10. Notação coral bizantina

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60 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Observe-se este desenho de Mapas (Fig. simetrias com as variações de 11), espécie de aranhiço rigorosamente um vilancete de Camões (HATHERLY, 1970), incongruente, não obstante a sua dinâmica e embora os efeitos sejam de outra ordem, como harmonia gráficas. Como no canto gregoriano, a noutros desenhos-poema. melodia desenvolve-se numa linha quase infinita, descendo e subindo por graus e com raros saltos Não se trata propriamente de uma glosa, no intervalares, explorando os aspectos fónicos da sentido de uma breve interpretação ou de linguagem. Só que a tinta preta não surge de um uma anotação, mas de variações, recheadas bico de pena de ponta quadrada, nem em rolo de mistérios e enigmas que Bach certamente de pergaminho, embora se conserve a memória não repudiaria, bem pelo contrário, levadas do gesto. O método não deixa, porém, de ser, em a um extremo do gesto improvisatório, em modo contemporâneo, o de um cantus planus , que, como no canto gregoriano, se valoriza o sendo a ilegibilidade, aludindo, por vezes, a texto e não tanto a música, o tal movimentos vibratórios celulares, vegetais ou instrumento aqui é a mão, não a voz, que traça geológicos, um instrumento articulador entre uma melodia simples e ágil com pouca mudança os lugares arcaicos da palavra e da imagem de notas e tessituras mínimas. O ritmo depende de composição orgânica. Para Ana Hatherly, o das palavras, e dir-se-ia livre de fórmulas de artista é um investigador com um pé na ciência. Ficamos, neste desenho, num salto da ciência Não estamos perante uma forma de para a mística, perante uma incessante repetição, abstracta, parafraseando Valéry, nem a fórmula é sobreposição e quase apagamento/diluição a de um feroz do nome Jungfrau Maria (Virgem Maria), e da espacialidade marcante. Tratou-se, para a alinhado com o final do Fausto, de Goethe , no escritora, de romper com os cânones do desenho qual se evoca a Mater Gloriosa , sendo a ponta do e da marcação tonal da musicalidade poética. Há «a» de Maria a nota suspensa, que se estende na uma predominância dos intervalos, a aparência página desta partitura oculta. Relembre-se que criativa surge na página-ecrã, anunciadora da a técnica plurilingue é usada por Ana Hatherly, palavra, sobressaem as tendências rítmicas bem como o staccato , herança do Barroco e da e sussurradas de uma litania. Ana Hatherly Cabala. Mais uma vez, deparamos com a técnica compõe, igualmente, em do tema e das variações, baseada não só nos Missa cantada experimental, com momentos aspectos semânticos e fonéticos, mas igualmente evangélicos explorados na sua exiguidade até nos fónicos, com aglomerações, desagregações, à exaustão: o sudário (30), as redes (44-46), as sobreposições, justaposições, contiguidades. turbulências da tempestade, do eclipse ou do É o gesto que, improvisando, reinventa o som. som em geral que envolvem a morte de Cristo Repare-se na força dos pontos (Cage, Fig. 4) (54-55 e 70-71). que ligam o desenho do nome. O método tem Leonorana sobre som mudo 33 O compasso. imagerie Coup de dés , apesar dos laços aeríferos Mapas, uma Micro- 33 Itálico meu.

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61 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS A ideia de um Liber Brevior contemporâneo No fundo, é só a passagem de uma fonte sonora oculto não pode ser excluída. Ana Hatherly usa no desenho texturas inovadoras, dá-se a ver táctil, do lado do gesto, como se lhe partitúricas, em combinação com as antigas, referiu Barthes (BARTHES, 2002: 307), enquanto acentuando a flutuação do ritmo, a violência movimento musical e em diálogo com a tradição. na dinâmica em obras de curta duração, ou Mais uma vez, as analogias são possíveis na melhor, amiúde, de formato diminuto. O método decifração de um paraíso estelar inacessível de Schönberg, a organização dos doze sons e ao qual só a arte acede enquanto modo de de uma escala ocidental em sucessão, sem iniciação e combate, em movimento agónico qualquer relação tonal entre eles, chamada entre aglutinação e dispersão. A série, segundo preceitos, que vão do sonoro espiritual obedece à disseminação que a mão ao místico, tem uma forte ligação com estes provoca no seu fundamento quase litânico. desenhos, bem como as peças miniatura de Webern. O serialismo integral, que cria obras Ana Hatherly teve, decerto, na sua dança das como pontos isolados no espaço inspirou-a. palavras, às quais se acrescentam sempre Messian, Boulez, Stockhausen, Cage e o jazz, índices sonoros, quem lhe soletrasse ao ouvido, claro, são marcos. Miles até mereceu um poema como aconteceu ao copista da Tora: «Meu filho, em Itinerários (HATHERLY, 2003: 56-57). Mas tudo sê atento no teu trabalho porque é uma obra isto são métodos, ferramentas para a criação de divina; se omites uma só letra ou se escreves um breviário-áudio-visual na oscilação agónica uma letra a mais, podes destruir o mundo entre «ne pouvoir se taire ni parler» (DERRIDA, inteiro» (Talmud da Babilónia). Por isso o grito 2006: 353). A obra merece um decifrador, um é mudo, prudente, mas transfigurador, como se descodificador, como a de Pessoa. O baú estava, escreve em porém, mais à vista. O desenho de arte, com pertenceu: “Mas a tua voz / a tua voz imensa temas traduzidos em pontos, é, para a escritora, outrora / agora / é chama extinta / singular sol um missal gregoriano escrito com gotas de sumido” (HATHERLY, 1999: 56-57) É a voz de água como se estas se espalhassem num um alfabeto cosmogónico, fundador. espelho em salpicos mínimos. A partir da série supramencionada, de que apenas reproduzimos Terminamos dando a ver o diálogo entre um exemplo na Fig. 8, há muitas leituras a fazer, imagens: os manuscritos da não só textuais como gráficas. Comparem-se os manuscritos seguintes (Figs. 7) com o desenho de Ana Hatherly (Fig. 8) no seu Veja-se-oiça-se este último como uma partitura: despojamento, nudez e movimento dialéctico. a outra, mais minimalista, mas o sentido dir-se- ia o mesmo, sempre com algo original. A escrita mise en scène Rilkeana , apenas porque nunca lhe 34 Missa da Beata Virgine, de Josquin des Prez; e o desenho de Ana Hatherly. PORTFÓLIO 34 Variação VII.

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62 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Figs. 12. Manuscritos do séc. XVI de Josquin des Prez: Missa de Beata Virgine

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63 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS PORTFÓLIO Fig. 13. Desenho de Ana Hatherly de Mapas da Imaginação e da Memória . A aparente nota musical é também um nove, número da eternidade e da sabedoria, um ponto e uma linha, som que se eleva

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64 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS BIBLIOGRAFIA ALAIN (2014 [1926]). Système des beaux-arts . Paris: Gallimard BAILHACHE, P. (1992). Leibniz et la Théorie de la Musique . Paris: Klincksieck BARTHES, R. (2002). Œuvres complètes - Livres, textes, entretiens , vol 4. Paris: Éditions du Seuil BENJAMIN, W. (2004). Origem do Drama Trágico Alemão , ed., apr. e trad. de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim BLOGUE, R. (2003). Deleuze on Musice, Paintings and the Arts. New York: Routledge CUSA, N. de (2003). A Douta Ignorância, trad. do original latino, introd. e notas de João Maria André. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian DELEUZE, G. e F. Guattari (2006). Rizoma , trad. de Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim DERRIDA, J. (2006). De la grammatologie . Paris: Les Éditions de Minuit GIL, J. (2018). Caos e Ritmo . Lisboa: Relógio d’Água HATHERLY, A. (1958). Um Ritmo Perdido . Lisboa: Ed. Aut. ______________ (2001 [1970]). Anagramático, Um Calculador de Improbabilidades. Lisboa: Quimera ______________ (1973). Mapas da Imaginação e da Memória . Lisboa: Moraes Editores ______________ (1983). A Experiência do Prodígio. Bases Teóricas e Antologia de Textos Visuais Portugueses dos Séculos XVI e XVII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda _______________ (1992). Obra Visual. 1960- 1990 – Coordenação da exposição e selecção das obras de Ana Hatherly, Manuel Castro Caldas e Jorge Molder . Lisboa: Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian ________________ (1999). Rilkeana , desenhos Ana Hatherly, apresentação de João Barrento e Elfriede Engelmayer. Lisboa: Assírio & Alvim ________________(2003). Itinerários. Vila Nova de Famalicão: Quasi ________________ (2004). Interfaces do Olhar. Uma Antologia Crítica. Uma Antologia Poética. Lisboa: Roma Editora _________________ (2009). Obrigatório não ver e outros textos da Comunicação Social (anos 1960-1980). Lisboa: Quimera HELDER, H. (1964). Electronicolírica. Lisboa: Guimarães Editores JANKÉLÉVITCH, V. (1983). La musique et l’ineffable . Paris : Éditions du Seuil KANDINSKY, W. (1996). Ponto, Linha, Plano, trad. de José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições 70. KLEE, P. (1973). La pensée créatrice, Écrits sur l’art, 2 vols.. Paris : Dessain et Tolra MESCHONNIC, H. (2009). Critique du rythme. Anthropologie historique du langage . Paris : Verdier (2002). Sefer Yesirah ou le livre de la création. Exposé de cosmogonie hébraïque ancienne; trad. do hebraico, introd. e notas de Paul B. Fenton. Paris : Éditions Payot & Rivages PORTFÓLIO

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66 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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68 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS POÉTICAS I

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69 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS à realidade ou é verdadeiro. Sobre a sua obra vêm dissertando alguns, especialmente após a sua morte, destacando-se Tania Martuscelli, que a ela se dedica há mais de dez anos, sendo responsável pela organização, introdução e notas dos dois volumes, já dados ao prelo, das Obras Completas, aguardando-se a publicação de um terceiro e, talvez, de um quarto volume. Pouco ou nada se tem escrito sobre os seus primeiros anos de vida, e, por conseguinte, do meio familiar em que cresceu, até chegar às Belas-Artes. Pasme-se, ainda, que nem se lhe encontraram herdeiros ou, quiçá, nem houve interesse em saber onde se encontravam os seus restos mortais, depositados no jazigo da ‘Família Baptista da Fonseca’, no cemitério lisboeta do Alto de São João. Não seria difícil, de posse deste último dado, chegar até àqueles. Curiosamente, Tania Martuscelli «encontrou» o autor destas linhas, único primo direito materno de Mário-Henrique, já depois do lançamento do primeiro volume das referidas Obras Completas , através de um amigo comum de há longos anos, o Prof. K. David Jackson, da Universidade de Yale, a quem, em sua casa, corria o ano de 1995, mostrara alguns textos manuscritos, alguns Mário-Henrique Baptista Leiria, de seu nome completo, nasceu em Lisboa, em casa, a 2 de Janeiro de 1923, filho de Mário Leiria e de Hilda Rocha Baptista Leiria, e morreu em Cascais, no hospital, a 9 de Janeiro de 1980. Entre 1961 e 1970 viveu no Brasil, regressando a Portugal, fisicamente muito debilitado, a necessitar de uma intervenção cirúrgica urgente, com implante de próteses em ambas as pernas, que lhe devolvesse a possibilidade de andar. Sua mãe escrevera-lhe manifestando o gosto de poder contar consigo na passagem a octogenária e vivia-se, à data, a chamada ‘Primavera Marcelista’. Como é sabido, frequentou a Escola de Belas-Artes de Lisboa (assim se chamava na altura) durante dois anos e meio, tendo sido expulso em 1942. Pertenceu ao primeiro grupo surrealista de Lisboa e foi um dos fundadores do segundo. Em 1957 casou-se, em Cascais, com a alemã Dietlinde Hertel, que tratava por ‘Fipsy’. Hélder Macedo diz ter-se encontrado com o casal, em Paris, no ano de 1958. O casamento duraria pouco mais, sendo que Mário-Henrique empreenderá uma viagem pela Europa, entre o final daquele ano e meados de 1961, sozinho. Sobre a sua vida, nem sempre o que se tem escrito corresponde POÉTICAS I Breves dados biográficos. A importância do meio familiar JOÃO ABEL DA FONSECA 1 1 Investigador.

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70 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS POÉTICAS IÉTICAS I quadros, e alguns objectos pessoais do primo. O mundo é pequeno ou é imenso, na razão inversa da vontade de quem procura! Comecemos, o mais sucintamente possível, a falar da família paterna. Mário Leiria, pintor artístico de formação, era um dos vários filhos de José Pedro da Cruz Leiria e de Maria Guilhermina de Jesus Leiria, e ficaria largos anos junto dos pais como seu braço direito nos destinos do negócio da família. Eram eles dois nomes bem conhecidos na Lisboa da aristocracia e da alta burguesia, por serem, a partir de 1892, os proprietários do famoso estabelecimento de antiguidades e leiloeira, a ‘Casa Liquidadora’, sediada em plena avenida da Liberdade, na loja do prédio, ainda existente, que faz gaveto, em frente da entrada para o parque Mayer (onde hoje se encontra a loja ‘Ermenegildo Zegna’). A empresa sucedia ao ‘Bazar Catholico’, fundado em 1881 pelo mesmo José Leiria, na rua de São Bento, e que se transferira, entretanto, para a rua da Escola Politécnica. Não vamos deter-nos na história desta empresa, que está feita, nem nos dotes respectivos dos seus proprietários, avós paternos de Mário-Henrique, também já revelados por alguns estudiosos. O que importa reter é o facto de seu pai, Mário Leiria, ter ficado, desde muito novo, ligado ao negócio da família, tornando-se, a par dos progenitores, um «expert» em várias áreas, tais como a de mobiliário antigo, loiças, cristais, pratas, jóias, imagens de santos, tapeçarias, livros raros, numismática e filatelia.Tal como o pai, realizava também restauro em pintura, escultura e dourados. Para além de dominar na perfeição as línguas francesa, inglesa e alemã, Mário Leiria era possuidor de uma vastíssima erudição, tinha PO

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72 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS à sua disposição uma rica biblioteca e começara o que se tornaria numa muito razoável colecção particular de antiguidades. Habituara-se, ainda, a conviver com eruditos e professores, bem como a frequentar os salões da aristocracia e alta burguesia lisboetas. A família Leiria morava perto, também na avenida da Liberdade, ao n.º 220, num prédio de gaveto com a avenida Barata Salgueiro, ainda existente (em cuja loja está o estabelecimento ‘Emporio Armani’). Tal com já foi referido eram vários os irmãos de Mário Leira: um oficial superior da Armada; um director do Banco de Portugal; um professor do Conservatório Nacional, compositor e violinista; bem como duas irmãs, uma delas pianista e outra violoncelista, que formavam com o último o celebrado ‘Trio Leiria’ que dava concertos em directo na Emissora Nacional, durante os anos 30 do século XX. César Leiria, seria ainda o autor de uma obra em sete volumes, publicada entre 1939 e 1946, intitulada Arquivo Musical Português. Quanto à família materna, eram seus avós João da Fonseca Val de Pereiro (mais conhecido por João Baptista da Fonseca ou, simplesmente, João Baptista) e Severina Rocha Baptista da Fonseca. O avô era escritor (romancista, poeta e dramaturgo, com obra publicada e levada à cena em teatros de Lisboa) e jornalista, para além de conhecido republicano. Foi proprietário e director de dois jornais Echos do Ribatejo e Folha Nova , de Vila Franca de Xira, onde nasceram os dois últimos dos seis filhos, de que Hilda, a mãe de Mário- Henrique, era a mais velha e chegou a ser chefe de redacção dos mencionados periódicos (Mário-Henrique referia, algumas vezes, que a sua mãe teria sido, provavelmente a primeira POÉTICAS I

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74 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS mulher a ocupar tais funções em Portugal). O avô João Baptista cegou com 42 anos de idade, Em 1903, chega ao mundo o tio Abel, o dos tendo a família regressado a viver em Lisboa, dois poemas que acompanham este artigo. mais precisamente na rua de Santa Marta, no Aluno distinto da antiga ‘Escola Academica’ prédio ainda existente, ao lado do que acolhe inicia a actividade laboral mal termina o curso o Instituto Cervantes. A avó Severina seria, a já que era imperativo tornar-se independente, partir de 1910, responsável pela administração financeiramente. Torna-se representante, em das propriedades que herdara de seu pai Portugal, das mais variadas firmas estrangeiras no Ribatejo, praticamente a única fonte de e começa a viajar pela Europa logo no pós rendimento da família, já que a possível carreira Grande Guerra, tornando-se um hábil homem política a que o marido estava destinado, ficou de negócios, poliglota e entusiasta do desporto impossibilitada pela cegueira precoce. Jayme, automóvel. Tinha 20 anos quando nasceu o o irmão varão mais velho, partira cedo para Mário-Henrique e foi, indubitavelmente, o seu África como administrador ultramarino e por lá maior amigo ao longo dos anos: tio extremoso andou durante quase 30 anos, em Angola, Congo do único sobrinho, a quem dedicou uma belga (onde casou e descasou), São Tomé e especial atenção a partir do momento em que Cabo Verde. Quando vinha de «graciosa», até à se declarou no jovem, ainda antes de completar capital do império, contava durante horas a fio as os 8 anos de idade, a doença óssea degenerativa mais aventureiras peripécias em trechos plenos que o acompanharia até aos últimos momentos. de interesse para o conhecimento da história, O tio Abel viria a concluir, na Alemanha, antes geografia, etnografia, fauna, flora, mineralogia, do início da II Guerra Mundial, a sua formação etc, daqueles territórios. A Adelina (conhecida por Lili), manteve-se tarde, fundador da Companhia Vidreira de solteira e ficou a viver com os pais e era os olhos Moçambique. do progenitor, para quem lia, diariamente, os jornais, revistas e algumas obras que, para além A última a nascer, em 1910, já mal foi vista pelos do português podiam ser em francês, em inglês, olhos do pai, minados pela atrofia galopante em castelhano e em italiano e constituíam uma dos nervos ópticos. Chamaram-lhe Célia mas só vasta biblioteca familiar. A tia Lili tornou-se dava pelo nome de Mimi. Com a Lili foi também numa enciclopédia ambulante, especialmente quem mais leu para o pai e pôde usufruir de em literatura e temas da actualidade. A Jovília, uma educação privilegiada, ministrada em casa também solteirona, foi a «babá» do Mário- Henrique: Quando este nasceu foi viver com a dos pais, sempre preocupados com aquele irmã, o cunhado e o rebento a quem devotou, até casal, algo bafejado pela desventura. Era uma ao final dos seus dias, um amor maternal. Tivera entusiasta da Biologia e dizia que queria ser aulas de canto e tocava, para além de piano, cientista. Tal como Abel, viria a casar-se, mas violino e violoncelo. Aprendera bem o italiano e ao contrário daquele, que teve um único filho, o o alemão, arranhava o francês e o inglês. em electrotecnia, tornando-se, entretanto, sócio- gerente da Empresa Eléctrica de Lisboa e, mais pelos irmãos mais velhos, bem como por amigos POÉTICAS I

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75 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS autor destas linhas, nascido em 1953, Mimi não nosso primo Mário-Henrique Leiria. Era, para teve filhos. Acompanhou, deste modo, o marido além de possuidor de uma vastíssima cultura, em várias comissões de serviço. Era este, um também um poliglota (são mais de 120 as obras outro grande amigo do seu único sobrinho, que traduziu, como bem se pode ler consultando embora por afinidade, durante muitos anos. O tio Eugénio terminou a sua carreira militar livros e em firmas, na área comercial, a fazer naval no posto de vice-almirante e foi o cartas em correspondência activa ou passiva. testamenteiro de Mário-Henrique, sendo sua Sabia ler música na perfeição e era melómano, mulher, a tia Mimi, a única herdeira do sobrinho, com uma grande colecção de discos que deixou a quem acompanhou nos últimos anos de no seu espólio. vida, com exemplar assiduidade, na sua casa de Carcavelos. Num primeiro momento foi Era ainda apaixonado por fotografia e tinha arrendada, à época, uma moradia na primeira especial predilecção por tudo o que fosse linha de mar, na marginal da Parede, por forma a tecnologia de ponta. Foi, também, durante anos, que o Mário-Henrique pudesse usufruir do iodo. vitrinista de inúmeras lojas na baixa lisboeta, Posteriormente, a família mudou-se de vez para especialmente preparando as montras para uma outra moradia, em Carcavelos, sita na rua os sucessivos concursos anuais promovidos João da Silva (ao lado do cinema) onde residiu pela CML, sendo vencedor em alguns anos larguíssimos anos, até todos se terem finado. Descritos os ambientes familiares, pode ficar-se montras, elaborava o «layout» da distribuição com uma ideia de como foi crescendo o Mário- Henrique no seio das casas dos avós e dos pais, cartazes de publicidade e para a imprensa, o ora lendo para o avô João Baptista que o adorava próprio papel de embrulho, etc (assim pôde (era mútuo este amor, e chegou a desenhá-lo servir Hélder Macedo, arranjando-lhe, face ao a carvão, num esboço pleno de autenticidade conhecimento próximo junto dos lojistas, cartas que conservamos no espólio herdado), ora de recomendação como desenhador, o que visitando a avó Guilhermina na ‘Liquidadora’, permitiu àquele incorporar essa profissão no ...ora ouvindo ler, cantar, tocar; ora vendo pintar, passaporte e partir para Londres, em 1958). restaurar, fotografar; ora andando de barco, de Muito ainda haveria para deixar escrito, mas comboio, de carro de corridas (o tio Abel tinha o espaço não o permite. Na fotografia do seu um Bugatti), etc. Pensamos que este ambiente familiar, aliado a Abel , a tia Beatriz (mulher do tio) e o primito João longos períodos de imobilização face à doença Abel . No canto superior direito da fotografia vê- que o afligiu em vários períodos críticos entre se a mãe. os 8 e os 17 anos, moldou, significativamente, o 2 A quem são dedicados os manuscritos que reproduzimos [Nota do editor]. 3 Autor deste texto – “Mário-Henrique Leiria: breves dados biográficos. A importância do meio familiar” [Nota do editor]. o catálogo da BNP) que ganhou a vida a traduzir em várias áreas. Desenhava as esquadrias das dos artigos a expor, os motivos para os casamento, em Cascais, à porta da Conservatória, podem ver-se, ao lado esquerdo de Fipsy, o tio POÉTICAS I

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76 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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79 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Ludwig Fried, ruminator, connoisseur of ambi- valence, deep into retirement, still writing, still longing for a breakthrough with a major publi- cation, The New Yorker, Atlantic, Ha’aretz, looked back on his life through his introspective rear- view mirror as he sat in his evergreen-enclosed garden on the Niagara Frontier, Western New York on a brightly moonlit midsummer evening. “Easier for a Lucky Strike to get through the eye of a needle,” he thought he heard his late father say. Camel, pop, camel “Camel, schlemiel , big deal, it’s all the same, but keep it up, your pecker, too, don’t waffle so much, you’re not the chef at the Stage Delicatessen.” You’re living in the past . “So where else could I be, wise guy?” He leaned back in his hunter green Adirondack chair, an unexpected letter of invitation from Yangon University, Myanmar, in one hand, a glass of Chivas in the other. A new Department of American Studies wanted him to discuss his “Exilic Literature After the Holocaust ,” his one article that had made a ripple, if not a splash, in the academic pond early in his career. It made him somewhat anxious now to think that In memoriam Ronald C. Wolf 2 “Until he is dead, do not yet call a man happy, but only lucky.” 3 POÉTICAS II Count No Many Happy HOWARD WOLF 1 1 American scholar and author. 2 I dedicate the story to my late brother, Sr. Dr. Ronald C. Wolf, who, in the last phase of his life in Cascais, helped Chabad House of Cascais become a permanent reality. His legal contribution pro bono was for “Ronnie” a return to his roots, and the granting of a charter was for the Municipality a profound gesture of historic post- Inquisition and Expulsion reconciliation. 3 Herodotus attributed these words to Solon, c. 638-c. 590 B.C.

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80 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS the article might upset the military censors. Ludwig assumed they were planted in when he returned, if he left. It was a no-brainer: universities, even if democratic Aung San Suu he would have to leave to come back. Kyi was State Counsellor, virtually President. If his talk came to the attention of the still powerful his encircled garden, a kind of bower, but no military junta, they might think he was referring paradise, no Eve or bliss in sight, and took some somehow to the brutal oppression of the Moslem comfort in the lingering twilight of the summer minority, the Rohingyas, in the western province solstice on the right bank of Ellicott Creek, an on the shores of the Bay of Bengal. “I see you’ve been doing your homework. Garrison Road in Amherst, New York, an affluent I didn’t pay for you to go to Harvard for nothing.” Columbia, pop, Columbia. “Whatever, ivy grows on old goyisher walls. Having grown up in the shadow of the origin and terminus of the brook. Holocaust, it didn’t take much for Ludwig to imagine that there always was some version of of Williamsville, founded 1818, it flowed to Aero the Gestapo ready to knock on his door and take Drive, an unpaved road that ran under the end him away never to return again. Myanmar might of a runway at the Buffalo Niagara International be no exception. He didn’t want to become a Airport. poster boy for Amnesty International. It wasn’t much of a risk, but it didn’t by me, but, okay, it’s still an airport. Don’t forget take much for a somewhat timid academic like your camp song, ‘Up in the air middy birdman…,’ Ludwig to imagine danger lurking around the keep flapping your wings, kid.” bend of a creek. He sometimes dreamed that he might live a life and write a story like Graham Greene, but when he woke up, he understood what Freud meant by wish-fulfillment. He would have preferred old “Rangoon” some reason, this information interested him and “Burma” instead of Yangon and Myanmar, now, even seemed important. echoes of high school assemblies, Oley Speaks Was it too late for him to fight for his life? Not the 1907 musical version of Kipling’s “Mandalay.” Battle of Lake Erie, but at least a skirmish. The world had changed, but he still was, too often, clunkin’ on the Irrawaddy of the past. It might be time before no time was left the onset of its incremental narrowing, an for him, a mini-version of Tennyson’s “Ulysses,” Elizabethan paradox. Even if he hadn’t felt to “smite the sounding furrows,” and there was favored by the gods of Mt. Olympus, the Eight a now a large group of Burmese immigrants in Immortals of China, or their modern equivalents Buffalo, some even in the suburbs. He might be able to help them somehow He had retreated in many ways to obscure stream that gurgled past his house on suburb of Buffalo. Not Scarsdale, but still affluent. He was, in some ways, like the stream. Only recently had he been curious enough to find out, thanks to Map-Quest, the Starting behind City Hall in the Village “You call that international, it’s no JFK I hear you, pop, I remember what mother said, “I raised you to fly the coop.” The rivulet ended at the edge of a small War of 1812 cemetery, recently unearthed. For It was his favorite time of year, however briefly it lasted, the lengthening of light before - a hustling literary agent and an invitation to POÉTICAS II

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81 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS appear on “Charlie Rose” to discuss his “latest” - there still, improbably, might be time to surface hands don’t move, I bought it from Al Singer, and make a few waves. This was, after all, the ambition of all American to come to the showroom when he needed a writers he ever had known in a sports crazy sawbuck.” country where wining Big Time was the only thing that mattered, a country of gladiators with college degrees, Boise State, Stanford, “Bama.” Long gone, even as memory, were the days of the Festival of Dionysus when Sophocles’ tragedies duked it out with those of Aeschylus. He was tired of being a minor print writer in the digital age where too many online editors had given him the finger. Not delusional, he “Okay, I’ll go to the Stage Deli for a while.” was pretty sure, he couldn’t claim the stature of Matthew Arnold, T.S. Eliot, or Lionel Trilling, but the word “online” stuck in his literary throat like a lobster claw that would fillet his sensibility. A grandchild of immigrants and street peddlers, driven to make a place for themselves in and the Big Top too soon and protected himself America, he still hoped against hope to win a by acting as if he were a Trumplike “loser” who National Book Award. “That’s my boy, a real dreamer.” Even though he was in the far-turn of his life… “You’ve got that right, sonny boy,” he heard his late garment center salesman father say in his nasal Mott Street accent, “it ain’t Belmont, but life’s a horse race and you’re a jockey, use the whip for Crissakes, run for the roses before they which to come to terms with what his late mother wilt.” …and even though he sometimes thought he heard the wind-chimes at midnight shape of a Ming Dynasty Tea House so that he and the suction of the grim reaper’s Electrolux could sit out in the rain, even in a light snow, vacuum cleaner in the dead of a Buffalo winter, and recall the years he had spent as a lecturer the frigid zone where academic tenure at a state in Hong Kong and Asia, the splash of neon light university, a brick, if not ivory, tower, had set him in Victoria harbor, the glitter of Central District down, he still wondered if the summer solstice as the Star Ferry approached the dock, affluent didn’t hold a message for him: you still have some time, it’s still light out, but it’s fading. “Here, Luddy, borrow my BULOVA, the the ‘Bronx Beauty,’ you remember him, he used Of course I remember Al, poor guy, never recovered from the loss to Tony Canzoneri in 1930, retina detached, Madison Square Garden, and I know you’re my cut-man, pop, I know you’re in my corner, but relax, I’ve got to work this through myself. I’m in the ring, not you. “I’ll try, but I worry.” That’s the problem, your worry makes me worry.” Good idea, have a tongue sandwich for me, but keep quiet for a change. “Who are you, the Delilama?” Wise guy. Maybe he had stepped out of the ring lived in the shadows of the heavy hitters. “Maybe they weren’t such heavy hitters, ask them, find out.” They’re gone, pop, they’re gone. “Maybe not. Am I?” I hear you, I hear you. He had built a comfortable world in called “end of life issues.” It even included a small gazebo in the ex-pats sipping G.H. Mumm champagne on the upper deck. POÉTICAS II

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82 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS On those few winter nights when he still he had gazed at it from the family’s Washington could sit in the gazebo, a brazier of hot coals near Heights apartment during his childhood and his feet, sniffing a tumbler of Grand Marnier , he adolescent years. He had outlived Hem, poor thought of himself sometimes as living in a guy, but Hem’s work had outlived Papa. Currier and Ives print or a Hokusai woodcut. Motionless, he thought of the cabin of the barge captain, Jean, in Vigo’s L’Atalante , surrounded by objets of past sea-voyages. He listened to that pipsqueak, Shorty Epstein, the thought also of his own “memorabilia highway,” one who said that you both were professors in the as he called it, a shelf of souvenirs from his past Grapefruit League. You listened to him, world travels: ostrich shell, South Africa; shofar, Israel; brass skewers, Turkey; pewter kris, Malaysia; porcelain Buddha, Hong Kong; celadon vase, Korea. Not a winner, he wasn’t a loser, global- wise. But it was clear now on this summer come to Buffalo in 1967; now it was 2017. Of solstice evening, perhaps because it was the course, there was no time or death in the Barney’s twilight of his life, that he was paddling his basement of the unconscious, so it didn’t feel that introspective canoe slowly towards Freud’s long in retrospect. Like an old movie he had seen version of the Styx – Thanatos. His real in his young manhood – Adirondack canoe, Hunter Green, oak gunnels, had been tied up, unused, for some time at the They never seem dated. small dock where his lawn edged the creek. He had enjoyed a few splashes of success thought, a game he sometimes played: 1867- in the literary creeks of Western New York: the 1917; 1767-1817; 1667-1717; 1567-1617. From the odd story in a small magazine in Oklahoma or end of the Civil War to America’s entry into WWI; Ohio, the occasional lecture on “Alienation, pre-Revolutionary American to the end of the Impotence, and Loss in American Literature” at War of 1812, The Battle of Lake Erie; the founding Hobart, St. Bonaventure, Keuka Junior College, of Harvard to the Hartford Wits; three years after and some other minor institutions around the the birth of Shakespeare to a year after his death. Finger Lakes - but not one from the Big Finger, It wasn’t easy to imagine these great arcs of time Cornell, where their literary proctologists having anything to do with his life, but they did, explored the black holes of previously opaque and when this truth hit him like a bolt from the texts. He had left behind, perhaps prematurely, the grand Hemingwayesque ambitions he had floated on the current of the majestic Hudson River that had become a symbol of motion as semi-coma. “You hit the nail on the balls…” Head. “Okay, head, smead, what’s the dif? You shmuck.” You remember Shorty? That was so long ago. He’s gone. You may run into him. Give him the finger for me, just kidding, he gave it to himself. He suddenly could see the long span of his life. How much longer could it be? He had Roshoman, Twelve Angry Men, Some Like It Hot, Ninoctchka, Body and Soul. But move it back a few centuries , he blue, he almost fell out of his Adirondack chair. “Bolts?” Bolt, pop, bolt. He now snapped out of his ruminative Rumination…a room with POÉTICAS II

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83 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ruminations, he had lived in one too long, it now illuminated Faberge eggheads. It had made him seemed clear, but how to get out of it? “Remember, kid, I told you to stay out of of light in the dimly lit Quonset huts where they rooms when you occupied the President’s Office taught. But, then, light was light, even light-lite. in 1970 and got arrested.” One of your great suggestions. But did it make sense to accept the Lowenstein (R.I.P., sort of), intellectual assassin, invitation to lecture in Myanmar, a program that apologist for Stalin, but Ludwig still had felt an old flame in the Foreign Service, Gretchen, that he was living in their shadows, darkness posted in old Rangoon, now Yangon, must have at morning, noon, and twilight, a mini-Arthur managed to wangle for him? Did it make sense for him to fly half way around the world economy class, scrotum crap, Luddy, remember where we came from, we scrunched, and end up semi-lame, his sciatica move uptown, kid we don’t stop at 14th Street, M. climbing from his big right toe to his hip, to Klein’s Basement.” share some warning signals about survival with a small audience who might or who might not divorced, his daughter and family living in understand English? Well, if nothing else, there Israel. His last lady friend, an Assistant Professor always was the possibility… of meeting ‘a Burma of Archeology, had left him to work on a dig in girl a-settin’.” “That’s my boy, still a dreamer. So what are you, a man or a pisher ? Get off your rump, helplessly. my kaddish . I hear the Electrolux humming, and it don’t sound like old blue eyes.” Don’t worry, pop, I’m no Oblomov. “Oblomov, did I know him? A buyer for J.C. Penny? Sounds familiar.” Forget it, pop, your grandfather might have met him, not you. He never got off his ass.” “So you know what I mean, good.” Didn’t it make more sense to stay in his he had managed somehow to see. garden, sit in the gazebo during a light summer rain, and accept the fact that he had accomplished that’s my boy.” all that he was likely to achieve? After all, he wasn’t a big shot like the big bulbs who had lit up the English department in the early days. There seemed to be a star in every other Windsor, might have said. A graduate of the office when he arrived at The State University Dragon School, King’s College, Cambridge, and of Western New York, a real planetarium of Princeton, “Wind” had been Ludwig’s officemate feel like a firefly, emitting imperceptible pulses He knew that some of them were burnt- out stars, intellectually disabled, like feisty Abel Koestler. The shadows lingered. “I didn’t come from so far to hear this Nothing really held him back now. Long Anatolia, a wall in a hole. “But I’m an old site,” he had quipped, “Not as interesting as a real ruin, Ephesus, sorry, Lud, nothing personal, you’re a great old guy, but not a shard. I need to earn tenure.” He understood and retreated then, a year ago, to his gazebo where he nursed a double scotch, Chivas Regal, and stared at the illuminated globe that hung from its crimson cedar rafter, a reminder of the parts of the world “You joined the navel and saw the world, Navy, pop, navy. Well, he had until July 4th to make up his mind, a “fortnight,” as the suave Brit., J. Lockwood POÉTICAS II

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84 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS for a year before he had been made a Fellow of All Souls College, Oxford. His definitive deconstructive biography, of Samuel Pepys, Epistolary Epistemology , had made him a hot tell you that. Take away this scarf and suit, and “hire” in 17th century studies. Yes, he had a fortnight or “Two fucking slaves over entries for the weeks,” as Lester “Beaver King” Finebloom, yang to Windsor’s yin, might have said. Raised pride, a hollow man, a thinking reed become a in Newark, nose tackle at Rutgers, Rhodes straw.” Scholar, Harvard Junior Fellow, Hell’s Angels (Hon.), Finebloom was the author, second book, of a best-selling biography, Kick Ass: Kerouac’s Embodied Cosmos. Once, sitting next to Ludwig at a department meeting, listening to Windsor hold shot. forth in admiralty English, “Les” had whispered in his ear, “Bullshit, Lud, good thing he’s leaving. blurted in Ludwig’s inner ear. Let me go with you, He’d rather kiss ass at High Table than ride a buddy, and I’ll try to show you how to snag some Harley Davidson like me, butt to the wind. He Burmese beaver.” may be leaving, but he’s going nowhere fast.” Going to Myanmar might not mean lowered over his bushy eyebrows, hair tonsured anything to Windsor or Beaver King. No Oxford like the rim of a volcano, silver-studded Harley don or souped up Finebloom, the trip might jacket turned up at the collar, seemed to be not augment his reputation and win him a standing next to Lockwood, shoulders slumped, Guggenheim. No academic rough rider, a beer-belly sagging. He cupped his crotch. groupie in every Starbucks, he had to admit that he still felt the pull of the East, “somewheres East of Suez.” Now he seemed to see a shadow standing under the arch of the tea house, an All Soul’s scarf neatly draped over his pin-striped Saville Row understood.” suit, eyes sunken in Whistler like grey shadows, Lionel Trilling in a melancholic mood. “You’ve got it wrong, Ludwig, old boy, spoke haltingly. terribly wrong. I had nothing to say after my plash in the left…maybe six months, no friends, even ‘Beaver academic pool. The old pedantic well went dry, Queen’ ditched me when she found out how no gas left in the antiquarian tank.” It can’t be, Wind, everything about you was bespoke. You made me feel as if I shopped at Goodwill. “Style isn’t the man, old chap, I can you’ll see a man, a recovering alcoholic, who Encyclopedia of British Diaries at three in the morning to salvage some Not you, Wind. “No wind in the sails, Lud, believe me, keep sailing, listen to those ‘temple-bells,’’ you’re yare, believe me.” It must be the Chivas , he thought, taking another “Maybe not, ass-hole, maybe not,” Les A silhouette of Finebloom, Stetson Me, a buddy? No chance, Les, I’m not a big prick like you, and since when do you ‘try’? You step over people, trample, go right to the top. That’s why you’re Beaver King. “I said, ‘try to show you,’ putz, you never What? The silhouette’s shoulders drooped lower. He “I’m not well…I don’t have much time many pelts I had stroked.” I’ll be damned. You could knock me over POÉTICAS II

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85 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS with a feather. “I always felt like a feather, Lud, I knew the words were true, that would make all the I was no Normal Mailer, no Harold Bloom, but I difference. needed you all to think I was, it’s all clear now, I was fighting for my life, recognition, respect. nightmares, it didn’t matter where the truth came Can you understand? I apologize.” But you weren’t a lightweight, you had that first book that defined a new field - THE ASSHOLE IS A GRAVE: THE CASE FOR PRISON REFORM. You were our ithyphallus, and you should see Bloom today, the man has suffered. “But I wanted more, Lud, MORE should come to act, to test the story he had made up be my epitaph.” The shadowy figure leaned forward and whispered, almost stuttered. “I have a confession, Lud…I always Manhattan’s literary circles shrink his grand thought… I had… a little one …I wanted a ambitions and choke the wind-pipe of his self- larger…” The shadow clutched his crotch more tightly. “…a bigger career, I got them mixed up, He had put Les and Wind on plinths and sat on a I was farblongjet, no Boeing-777, a little like you. stool. Now I can tell you, maybe it will help both of us.” You even know some Yiddish? “Didn’t want anyone to know I was from Newark.” Windsor chimed in “What kind of ‘jet’? Sounds base about himself? After all, you didn’t have to as if we’re in the same sinking boat, Lester, but I go on a safari to hunt for truths about the human thought you were our anchor, dear boy, in the old experience. days, ballast in the hold to keep us from drifting too far from real life, don’t tell me you had a hole playing softball in the schoolyard anymore.” in the bottom of the bucket, too. You, a little one ? He wasn’t Hamlet and he wasn’t up the creek Hard to believe.” “ Hard was my problem, Wind, I never secured against the side of his dock. If he was should have called you a Pepys-squeak, I was, I going to paddle up the Irrawaddy and hear the was an asshole to say it.” “Your field at the time, old sport, I understood, feathering his oars. no problem.” If what he had heard, or thought he were enough house-lights casting a glow across had heard, was true, not just a somewhat tipsy the creek for him to paddle safely towards a spot auditory delusion, or, if that, true nonetheless, where he could see some jets coming in over the a deep intuition and important, a belief that Ruminations, day dreams, hallucinations, from, so long as it came in time to change one’s life, especially if the life was your own. “Listen to yourself, Luddy, show ‘em what you’re made of.” I’ll be damned, maybe it wasn’t too late. Ready or not, Ludwig realized, the time had about himself. Maybe he had let his literary frustrations, envy, muted resentments, and exile from esteem. Unable to face his buried resentments, he had retreated to the shadows of his garden. “What, live like a turtle, like me?” If he could have been so wrong about Les and Wind, why couldn’t he have been equally off- “Good question, Luddy, and you’re not without a paddle. In fact, his canoe was neatly tinkle of the temple bells, he needed to practice Although it was near midnight, there POÉTICAS II

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86 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS glide-path, a reminder, if he needed one, that the water. people were on the move. As he stood up, a little wobbly from having been stuck in his chair so long, he heard in Ludwig’s inner Yankee Stadium. the light toll of his neighbor’s wind-chimes. Encouraged by the soothing sounds, he ambled the creek where the reflection of the moonlight in to the dock. Centering himself on the seat, he untied he thought he heard muted weeping. It was, the canoe and began to paddle towards what unmistakably a woman’s. looked like a string of illuminated Chinese lanterns a quarter of a mile in the distance. movement of the canoe so he could take a closer He wasn’t sure if he was paddling upstream or look without disturbing her. She sat, a shawl over downstream or if the creek had a current, but it her shoulders, legs crossed under her didn’t matter – he was paddling, not drifting. “Better to stroke than have one, think of her face like the filigreed eaves of a Thai temple me.” I say Kaddish, pop. As the canoe cut through the water, creating a and extended her arms towards the creek, V-shaped ripple, he thought of Shorty Epstein, maybe towards him, he wasn’t sure. coxswain for the 1960 Columbia crew, and wondered what the little naysayer of old would them, please help.” think of his midsummer evening voyage. “Give it up, Lud, you’re too old to set sail. face, and seemed to be praying again. He thought Who do you think you are, Odysseus? I told you about calling out to her, but then thought better years ago, we’re landlubbers, we’re from the about it. She needed help, but she needed to be Bronx, we didn’t go to Annapolis, turn around, alone now. He understood that deeply. He had back-tack, shoulder your oars.” Suddenly, imagining Shorty leading “You’ve been pampering yourself, lefty, hit the a chorus of naysayers in a moss-covered line,” his old football coach, Quinny, screamed in amphitheater, he laughed, paddled faster, and his inner gridiron. pressed on. “Better than pressing a pair of pants in a “green light.” Her posture reminded him of sweatshop, I didn’t send you to Yale for nothing.” Columbia, pop, Columbia. “Gem of the Ocean?” 116th Street and Broadway, remember? “It’s not Alzheimer’s, Luddy, it was just so long deep past, the brain’s Fort Knox vault, a moment ago.” His oar seemed to be gliding more easily through “Give me a break, Lud,” Les sneered, “no one “You’d do better with Kierkegaard’s Either Or ”! Shorty called out from the bleachers As the canoe glided towards the bend in the water merged with the glow of the lanterns, He gently stopped the forward longyi in a prayerful position, her hands interwoven over “No one can find them,” she seemed to be saying. She then unlocked her hands, uplifted her face, “I can’t reach them, help, someone help She then lowered her head, covered her been, too long, a connoisseur of aloneness. He thought of Gatsby reaching for the something more tragic, but what was it? And then an image of Picasso’s Rape of the Sabine Women bubbled up to the surface of his mind and behind it -- like a following ripple, out of the in the Aeneid … POÉTICAS II

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87 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS remembers that ancient crap.” “I do, old sport,” Wind chimed in, “when Buffalo. New York City didn’t get all of those who Aeneas, entering a temple in Carthage, sees a had lost or fled their homelands. mural of the Trojan War in which so many of his comrades had died, cries, and says, “There are mind about accepting the invitation to Myanmar, tears for events and mortal things touch the soul.” “At least you spared us Latin, asshole.” “What do you know, Finebloom?” his father moving up and down his right leg like the loose echoed, “he’s a Columbia man.” Thanks pop. Then the Latin spouted up from the fountain of action, a writer in an age of sound-bites, his work memory… sunt lachrimae rerum et mentum mortalia tangent …. He still could translate, “There are tears was clear: he couldn’t change if he didn’t raise for events and mortal things touch the soul.” He thought of Hemingway, “The world breaks everyone and afterward some are strong in the yea-sayers said in unison. broken places.” Maybe he had stepped out of the ring too soon. It was at least clear that he had down the runway and lifted up into the night-air. been wrong about many things, including the He hoped the skies would be friendly for these measure he had taken of himself. “Al would have fought again, if he he decided to make the trip and told the students could’ve, Luddy.” “You’ve still got a jab, kid, you still can throw a be fighting for. punch.” Al, you too?” “Never left you.” Head lowered, he stroked more vigorously now. wouldn’t mention the He didn’t want the weeping woman to see him wouldn’t make any promises this time, except to staring at her. After a few minutes, hearing the himself. roar of engines, he back-paddled, looked up, and realized his was at the end of the stream in a started paddling home. Although he was panting, hollow below the end of the runway. Looking up, he could see the logo of the 737 in the flashing taillight – UNITED. Heart pumping like the turbines at Niagara Falls Power Station, he felt as if he might be on the verge of a mission. For all he knew, the weeping woman might be Burmese or Syrian, even Sudanese. There were many immigrants and refugees in He still had some time to make up his but it would be a hard trip for someone like Ludwig. He was, after all, old, alone, sciatica carriage of a Remington typewriter. A ruminator in a world that called for was, as one friend had written to him, “quietly moving,” another, “a call of the mild.” One thing his voice and take some risks. “We’re betting on you,” the chorus of Engines powered up, the plane roared night passengers and the censors on vacation if what human rights he thought they really should Many years ago on a lecture tour of China, he had promised the Political Affairs Officer at the US Embassy on Beijing that he laogai , China’s Gulag. He I may have gotten lucky, he thought, and everything seemed to be flowing. POÉTICAS II

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88 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS EDITOR’S NOTE Due to the specific cultural echoes that keep on emerging in this text, we have asked its author for a few notes which might allow our (Portuguese) reader to unveil and understand their meaning. Below follows the answer we got from Howard R. Wolf. Mário Avelar A FEW NOTES FOR “Count No Man Unhappy…” There are two narrative strands in my story: a somewhat objective narrator and that same all people including Jews, but his powers to do narrator as a “foreground observer” (Henry so are limited. He is a “small” man in a “large” James’s term) who embodies and conveys the world. His humanistic efforts often “hit the wall,” consciousness of the protagonist, Ludwig Fried. as we say; and he can seem foolish for a while, They are, to some extent, alter-egos. As the but we smile, I hope, at his efforts. The contrasts grandson of a tailor, I might say “altered-egos.” There are within the story many dialogic voices: I hope, comic effects. Comedy (including puns) Ludwig’s as spoken within his mind (italicized) serves to bring out contradictions and to take the to his late father; his dead father’s voice as sting out of them: Ludwig is a luftmensch who imagined by Ludwig (the past is present for him); rises and falls; we admire his efforts to expand two former colleagues: J. Lockwood Windsor and his life and smile when life deflates him. Lester “Beaver King” Finebloom (who represent two poles of the American literary academy – Well, I’ve tried to explain too much. refined and pseudo-proletarian). The main difficult, I think, for whom American bible) Leo Rosten’s charming and learned THE English is not an idiom, will be hearing American JOYS OF YIDDISH. Yiddish inflections in the repartee between father and son – a generational conversation. GOOGLE – our Oracle of Delphi – can answer The father is a product of Manhattan’s immigrant most questions about names, places, historical socio-linguistic world of 1900-1914 when millions events, though some obscurities will remain. of Eastern European Jews came to America in Readers can email me – [email protected] – order to escape poverty and oppression. The father’s mercantile success (for a period) made Ludwig’s education and literary ambitions possible, but he has internalized his father’s insecurities about his place in the world – is a Jew safe anywhere? -- at many levels. So: in this story, as I see it (and I’m only the author), the father wants his son to live out some of his unfulfilled ambitions (to see the world); Ludwig will try to fulfill his father’s thwarted romantic vision, but he will do so with a sense of uncertainty and anxiety. He will try, somehow, to improve the world (to make it whole again, tikkun olam , if it ever was), to make it safer for between dreams and realities (self-confidence and low self-esteem) as the story unfolds have, For the reader puzzled by American Yiddish words, I recommend (something like my secular and I’ll do my best to shed light on what remain as obscure references. POÉTICAS II

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89 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS At the end of the day, a story’s success rests on its general and central import. If a story doesn’t contain some universal element, it’s probably not worth reading. For readers who want to know what happened to Ludwig Fried in Myanmar, they will be pleased to know that a sequel to his “canoe” voyage will appear in another CIJ: “ONE DAY AT THE END OF HIS WORLD. Howard R. Wolf Amherst, NY 2/12/2019 POÉTICAS II

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90 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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93 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS face à un paradoxe et à des ordres de grandeur totalement différents de ce que nous avons connu jusque-là. (BACHILO, PROULX, 2006: 53-54) Tendo este paradoxo como cenário e tomando o actual processo de formatação, automatização e globalização de informação constata-se que, como ainda recentemente num artigo publicado no Le Monde (18/8/2018), se demonstrou, na imprensa periódica e de um modo algo paradoxal, se tem reforçado o recurso, ou mesmo regressado a anteriores formas de escrita como o folhetim, a crónica, a reportagem, o artigo de opinião. Contudo, nesta revisitação usam-se novas estratégias, nomeadamente privilegiando-se algumas dessas formas, deixando na penumbra, deliberadamente, outras. Não é objecto desta nossa análise inventariar o modo como na imprensa portuguesa se foi operando essa reapropriação, ou se, em Neste tempo de constante renovação dos meios de comunicação, nomeadamente os digitais, e onde novos e diferentes públicos são visados, assistimos à desmultiplicação das tecnologias de informação e comunicação. No entanto, e apesar da sociedade de informação se desenvolver a partir do aumento das infra-estruturas de comunicação, aposta-se cada vez mais no conhecimento compartilhado. No entanto, como avisadamente Patrick-Yves Bachilo e Serge Proulx chamaram a atenção: Il est nécessaire de prendre en compte la nature du jugement impliqué dans les processus complexes de production et de construction des connaissances. Les acteurs humains agissent souvent dans un cadre où l’information est tacite. L’explicitation de la connaissance suppose que l’information soit mise en contexte en regard de l’usager humain qui cherche à s’approprier l’information.(...) Or, si la diffusion de plus en plus fluide et à une large échelle de l’information constitue un point fort de l’informatisation des sociétés, le risque de voir la désinformation se propager à une vitesse et à une échelle jamais vues n’est pas moindre. Nous voilà ARTE DO TEMPO José Manuel Tengarrinha e a civilização do jornal em Portugal : A Nova História da Imprensa Portuguesa Das Origens a 1865 ANA PAULA MENINO AVELAR 1 1 Professora universitária.

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94 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Portugal, não permaneceu essa coabitação de possibilita, assim, entender como, ao longo dos formas. Contudo, constata-se que também entre séculos, se procurou cativar diferentes públicos, nós se assiste à reconfiguração das poéticas criando-se diferentes vozes, descodificando-se jornalísticas do século XIX, persistindo o debate uma história cultural. Importa ter em atenção em torno do modo como o discurso literário que se toma o conceito de cultura na sua tripla imbrica ou é imbricado no jornalístico. O dimensão: ontológica, antropológica ou saber pressuposto de onde parte Marie-Eve Thérenty constitutivo. Na primeira acepção visam-se em La Littérature du quotidien: Póetiques jornalistiques au XIX siècle poderia ter sido funções, práticas, ou até apropriações colectivas subscrito por aqueles que, também em Portugal distintivas da existência humana, enquanto se debruçaram sobre uma historiografia da que na segunda se descodificam hábitos e imprensa periódica. Recorde-se como, nos representações mentais expositivas de costumes, nossos dias, nos interrogamos sobre se as várias crenças, leis, técnicas, artes, linguagens.... redes de informação transformam os códigos de Já a terceira reconfigura cultura enquanto comunicação ou se a transformação decorre no saber: “(...) um processo no decorrer do qual seio da linguagem que se usa? Já anteriormente, mais precisamente no século âmbito desta tríplice concepção que se deverão XIX, a rápida evolução da imprensa periódica ler os discursos produzidos para os jornais ao revolucionou o quotidiano. Fortaleceu-se aquilo longo dos séculos. que alguns teóricos consideram ser a “civilização do jornal”. Subjaz a esta denominação e a este Seminal na descodificação destas arco temporal, o entendimento de dois campos busca da compreensão de um tempo longo onde à cultura estaria confinado: “ ... the realm dessa “civilização do jornal”, foi o trabalho de of qualities, moral values, ends – and civilization – José Tengarrinha sobre a História da imprensa the domain of quantities and means.” (MULHERN, em Portugal. Logo em 1965, aquando da 1ª 2000: 16) É no campo da “civilização do jornal” edição da sua que se constituiu uma poética diferente, marcada pela matriz literária e configurada foi o “(...) conteúdo que a palavra [imprensa] pelas exigências mediáticas. Como Thérenty vulgarmente hoje tem, sinónima de jornalismo, significativamente recorda: La Civilisation du journal s’est donc attachée à mettre au jour les diverses poétiques de l’écriture de presse, en cernant ses formes et ses fonctions (éloquence, rhétorique, information, instruction, divertissement, illustration,etc.), ses genres et ses rubriques (le reportage, la chronique, le fait divers, les rubriques pour rire).”(THÉRENTY, 2014 : 51) Perceber como a imprensa periódica evoluiu verifiquem a necessidade de recorrer a ele.” (16). os sinais diferenciadores, marcas simbólicas, o indivíduo pensante estimula as faculdades do espírito.” (RIOUX, SIRINELLI, 1998: 17) É no vozes , e na História da Imprensa periódica portuguesa , ele escreveu que o seu objecto ou seja imprensa periódica.” (TENGARRINHA, 1989: 15) Ainda neste mesmo texto ele declara a falta de reconhecimento do papel nuclear que o jornalismo desempenha: “Considerado, geralmente, assim, a latere da literatura, ou como um seu género menor, o jornalismo não tem preocupado os nossos investigadores históricos ou literários, embora de tempos a tempos estes ARTE DOTEMPO

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95 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS A imprensa escrita foi e continua a ser um objecto 1974 encarcerado em Caxias, em regime de matricial e incontornável para a compreensão isolamento e incomunicável, saindo dois dias de um dos meios de comunicação que integra o depois deste estabelecimento prisional (LEMOS, nosso dia-a-dia. O seu estudo participa de um dos 2009: 284-285). actuais campos de investigação, o das relações entre a literatura e a escrita jornalística. Importa, Durante a sua intermitente frequência do curso aliás, ter em atenção o percurso biográfico de de licenciatura, motivada por essa mesma José Tengarrinha, o qual se encontra intimamente participação política, interessou-se pela História ligado à actividade jornalística e aos estudos oitocentista, a qual seria um dos seus tópicos de históricos, pois tendo nascido em Portimão investigação ao longo da sua carreira académica. (1932) e concluído os estudos liceais em Faro, Participou na revista aos 17 anos vem para Lisboa onde ingressará foi jornalista profissional no na universidade, sendo toda a sua formação integrando desde 1956, ano da sua fundação, o fortemente marcada pela sua intensa actividade política na oposição ao regime político então em Histórico-Filosóficas na Faculdade Letras vigente. Seria encarcerado na colónia penal de da Universidade de Lisboa com uma tese Penamacor, depois de ter sido expulso do corpo de licenciatura intitulada, de oficiais milicianos acusado de desenvolver actividades políticas que colocavam em perigo chefe de redação do jornal onde trabalhava, a segurança do Estado. Não é, todavia, propósito desta análise traçar ano interrompesse a sua vida profissional. o seu importante e único legado cívico, contudo, o mesmo tem que ser, ainda que muito Na revista sinteticamente, evocado, pois é a partir desses da cultura portuguesa, como Júlio Pomar, António interstícios que se tece a obra; como Paul Ricoeur Saraiva, ou Maria Lamas, sendo interessante assinala: “Sous l’histoire, la mémoire et l’oubli. observar que, quando na década de 1960 Sous la mémoire et l’oubli, la vie. Mais écrire começou a escrever na revista la vie est une autre histoire. Inachèvement.” no número comemorativo do cinquentenário da (RICOEUR, 2000: 657) Desde muito jovem José Manuel Tengarrinha participou intensamente na oposição ao governo do artigo salazarista, intervindo no Movimento de Unidade Saraiva e das Democrática, nas campanhas pela Oposição Democrática, e sendo um dos fundadores do Nova/visualizador?id=09913.041.018&pag=6). Movimento Democrático Português (1960). Ao longo da sua vida foi preso pela polícia Recorde-se igualmente que no ano seguinte política (PIDE), estando no 25 de Abril de começa a publicação nesta mesma revista de Vértice , e desde 1953 jornal República , Diário Ilustrado . Em 1958 obteve a licenciatura António Rodrigues Sampaio, Desconhecido, e dois anos depois seria o Diário Ilustrado, ainda que a sua prisão por motivos políticos em Dezembro desse mesmo Vértice conviveria com vários nomes Seara Nova, logo República (nº1378-79-80 - Set/Out. 1960), o seu texto sobre José Félix Henriques Nogueira - O primeiro republicano português surge depois República desconhecida de António Primeiras Leis da República e a Mulher de Maria Lamas (http://ric.slhi.pt/Seara_ ARTE DOTEMPO

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96 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS um extenso ensaio sobre tradição e revolução, tomando a figura de Mouzinho da Silveira ( Seara Nova , n.º 1389-90, Jul-Ag.1961: 140-142, 168; (1965), não deixando de se interessar pelas n.º1391-92, Set.-Out1961:140-142, 168;nº 1400, questões da recepção da escrita, redigindo, por Jun.1962:140-142, 168;n.º1401,Jul.1962:140-142, exemplo, um estudo intitulado 168). Deste modo, José Manuel Tengarrinha continua a revisitação da História oitocentista Foi ainda antes de 1974 (ano lectivo de 1972/73) portuguesa, retomando a análise da figura que que participou no tinha sido objecto da sua tese de licenciatura, na leccionação das cadeiras de Economia IV e e escrevendo uma série de artigos sobre V, abordando temáticas em torno da História António Rodrigues Sampaio para o Diário de Lisboa , os quais seriam premiados, em 1962, pela Associação dos Homens de Letras do Porto apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Foi ainda em 1961 que, a par do seu intenso continuando a intervir intensamente na vida labor jornalístico, leccionou no ensino técnico, política, nomeadamente como membro do MDP/ sendo encarcerado em Dezembro de 1961 pela CDE. Foi deputado à polícia política no Aljube onde foi torturado e (1975) e à esteve incomunicável. Saiu dois meses depois, tendo sido proibido de exercer a sua actividade Centremo-nos, porém, na sua actividade profissional. No ano seguinte, obteve da Fundação Calouste Gulbenkian uma bolsa de estudo por ao jornalismo seja na vertente de articulista três anos para prosseguir as suas investigações ou de professor (de 1974 a 1982 leccionou em torno da História de Portugal oitocentista. A sua acção cultural continuaria a prosseguir através de diferentes tipos de intervenções, que em 1993 se doutorou com uma tese sobre nomeadamente a difusão da investigação que os estava a ser produzida no seio da academia. (1751-1825), a qual seria posteriormente A sua participação, seja como fundador seja publicada (Colibri, 1992), e que ao longo da sua posteriormente como director do Centro de carreira universitária, na qual se jubilaria como Estudos do Século XIX do Grémio Literário (1969-1974), é disso exemplo, a par de toda uma de Lisboa, leccionou em várias universidades série de funções que iria sempre desempenhar estrangeiras, sendo o seu trabalho reconhecido durante a sua intensa intervenção académica, internacionalmente. política e cívica. Ao longo destes anos trabalhou sobre figuras A sua obra ensaística tocou desde sempre a como José Estevão, saindo em 1962 a sua Obra Política de José Estêvão , a acima referida 1ª edição da História da Imprensa periódica portuguesa A novela e o leitor português: estudo de sociologia da leitura (1973). Instituto Superior de Economia Económica de Portugal (séculos XVIII-XX). A partir de Outubro de 1974 leccionou História Contemporânea, no Departamento de História, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Assembleia Constituinte Assembleia da República (1980-1987). académica e no facto de continuar sempre ligado História do Jornalismo no curso Superior de Jornalismo oferecido pelo Instituto Superior de Meios de Comunicação Social ). Refira-se, assim, Movimentos populares agrários em Portugal Professor Catedrático da Faculdade de Letras revisitação da História oitocentista. Assiste-se ARTE DOTEMPO

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98 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS nos vários textos publicados a sua constante (Seara Nova, 1976), ou ainda, já no novo milénio, procura em descodificar, analisando fontes em várias, aquele que tinha sido o esforço patente no final do nosso século XIX em delimitar a Caos, 2008), seja no desenho de perfis que historiografia da filosofia da História. Recorde- se que, como escreve Fernando Catroga, se historiador. Em 1962 debruçara-se, como acima visava então: “... reivindicar o seu cariz científico, foi mencionado, sobre a obra política de José através de um método histórico-filológico – que Estevão; 49 anos volvidos escreve se pensava ser o mais adequado para comprovar a veracidade do narrado.”(CATROGA, 2017: 60) Assinale-se ainda nesta vertente que dirigiu a Em 1975-56 José Manuel Tengarrinha prefaciou e anotou o diário da Guerra Civil (1826-1832) do Civil do Distrito de Lisboa, 2002, 2 vols.). Marquês de Sá da Bandeira, que seria editado pela Seara Nova. A contemporaneidade e os seus desafios tanto no âmbito da sua carreira académica, historiográficos levam-no a publicar, já na década como intervindo ao longo da sua vida no espaço seguinte, os Estudos de história contemporânea de Portugal (Editorial Caminho, 1983). Para autarquia de Cascais em 1996 com a medalha além de editar um livro sobre A historiografia portuguesa, Hoje (Hucitec,1999), prosseguiu de Honra. Para além de, ao longo de décadas, esta vertente interrogativa através do diálogo ter dirigido os com a historiografia brasileira, organizando com realizados em Cascais (1992-2017), presidiu José Jobson Arruda o livro a Historiografia luso- brasileira contemporânea (EDUSC, 1999). O nosso historiador coordenaria igualmente nomeadamente formais onde a História local uma História de Portugal (UNESP, EDUSC, e as questões ligadas ao património estiveram Instituto Camões, 2000), que surgiu como sempre presentes. Foi também nesta última uma colectânea de ensaios temáticos, na qual área de trabalho que fundou e presidiu ao participaram vários historiadores portugueses e dois brasileiros e onde ele próprio foi autor de um capítulo sobre a contestação rural e a nascera seria também objecto da sua atenção, revolução liberal em Portugal. No ano seguinte tendo coordenado, em 2011, a obra esta obra foi revista e aumentada. Os contornos da intervenção política e cívica Retomemos, porém, a integração de saberes foram igualmente objecto da sua reflexão, seja e o questionamento analítico multidisciplinar em textos como Combates pela democracia E o povo, onde está: política popular, contra- revolução e reforma em Portugal (Esfera do vai revisitando ao longo do seu trabalho como José Estêvão: o homem e a obra (Assembleia da República, 2011). História do Governo Civil de Lisboa (Governo A História regional e local ocupou igualmente os seus interesses, desenvolvendo o seu estudo onde era munícipe, sendo homenageado pela de Mérito Municipal e em 2005 com a Medalha Cursos Internacionais de Verão ao conselho de administração do Instituto de Cultura e Estudos Sociais (sediado em Cascais), dinamizando vários tipos de cursos, Centro Internacional para a Conservação do Património (CICOP – Portugal). O espaço onde Portimão e a revolução republicana (Texto Editores, 2010). de que o seu trabalho, nomeadamente em ARTE DOTEMPO

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99 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS torno da imprensa, se revestiu. Atente-se como na que considero ser a sua investigação ao longo desde cedo procurou desocultar a recepção da de décadas em torno da “civilização do jornal” escrita, examinando vários aspectos, entre eles, em Portugal, José Manuel Tengarrinha atendeu à as questões em torno do leitor. Para além do já referida tríplice dimensão do conceito de cultura: citado texto sobre a novela e o leitor português ontológica, antropológica e saber constitutivo, (Prelo, 1973), em 2006 regressou à reflexão tomando a História como um em torno da Imprensa e opinião pública em Portugal (Minerva). Três anos antes publicara Da liberdade mitificada à liberdade subvertida: uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828 (Edições Colibri). A história social foi sempre um dos seus espaços permite descodificar linguagens, públicos e de intervenção historiográfica, entendo esta impactos no quotidiano. Valida-se, deste modo, o numa dupla dimensão a que peut désigner un domaine de l´histoire ou une sous-discipline historique dont les objets (groupes, identités, processus, mouvements...)ressortissent au « social » considéré comme instance spécifique distinguée de l’économique, du politique ou du culturel. L’expression désigne également une approche globale des phénomènes historiques, à partir de l’idée séminale de la primauté de la détermination sociale de ces phénomènes. (DELACROIX et al, 2010: 420) Como Nuno Gonçalo Monteiro sinalizou, no caso português a História social sofreria a explosão do publicismo onde o cunho ensaístico iria imperar. Tal ocorreria essencialmente nas décadas de cinquenta e sessenta do século XX, e nos círculos marginais à universidade. Os temas abordados neste âmbito seriam: Primeiro, o século XIX, depois, a Primeira República e o Movimento Operário. O Estado Novo era ainda um interdito. Neste terreno pontificarão autores como Joel Serrão, José Tengarrinha, Vítor Sá, César de Oliveira e, mais para o final, Miriam Halpern Pereira, Manuel Villaverde Cabral ou o próprio Oliveira Marques, entre outros. (MONTEIRO, 2017: 198) Contudo, ao exercitar o seu ofício de historiador, iter , onde o conhecimento do passado se constitui como premissa nuclear para se entender o presente e se transformar o futuro (CATROGA, 2009: 14). Neste mesmo campo de análise dever-se-á atender ainda às contaminações entre autores, temáticas e modalidades narrativas, o que nos nosso objecto de estudo num processo que se institui como contínuo. Semelhante conceptualização analítica levou a que a sua obra ultrapassasse as fronteiras da sua primeira designação, corporizando, para o próprio autor, um objecto em constante criação e depuração interpretativas. Recorde- se como nas sucessivas edições, José Manuel Tengarrinha reviu e aumentou o seu objecto de estudo e como se foi alterando a recepção ao mesmo. Na segunda edição da sua História da Imprensa Periódica (1989), a qual sai cerca de 24 anos depois da primeira, o historiador expõe o que fora o seu principal dilema: (...) ou demorar alguns anos a preparação de obra muito extensa, coma base na vasta documentação original que ao longo de muito tempo fora reunindo; ou, fazendo prevalecer um critério pragmático, aprontar uma nova edição, acrescida de algumas importantes informações entretanto recolhidas. Após hesitações, optei pela segunda. (TENGARRINHA, 1989: 13) O trabalho em torno do aprofundamento do tema e a sua síntese investigativa culminou na redação da sua Nova História da Imprensa Portuguesa – Das origens a 1865 , vinda a lume em 2013. Nela José ARTE DOTEMPO

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100 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Manuel Tengarrinha desenvolveu o seu trabalho especificidade, mas não a sua marginalidade, anterior, delimitando claramente na introdução o isto é, numa visão socialmente integrada.” (17) objecto, agora revisitado. O historiador explicita o porquê do seu arco temporal, isto é, o facto Nas palavras do nosso historiador ecoa o de considerar desde “as origens dos papéis pressuposto epistemológico do que se entende informativos em Portugal” até ao momento em como “documentos culturais”, subscrevendo-se que surge o Diário de Notícias , o qual marcaria a designação que Paul Ricoeur usa na sua teoria o início da “época industrial da imprensa”, da interpretação. Estes documentos culturais seguindo escrupulosamente, ao longo das suas ganham inteligibilidade nas conexões tecidas páginas, aquela que seria sua carta de intenções. tanto com as condições sociais da comunidade Assinalou, assim, em primeiro lugar, a referência de onde emanam como com o público a que aos periódicos e séries em língua portuguesa eram destinadas (RICOEUR, 2019: 126). Estes que se teriam publicado, tanto em Portugal documentos culturais são entendidos como como no estrangeiro, apresentando o local e instrumentos e meios e José Manuel Tengarrinha duração de publicação : “filiações e sequências, consciente da porosidade existente entre a conteúdos e orientações, procurando, sempre escrita literária e a escrita jornalística distingue que possível, dar a conhecer os seus redatores, editores e financiadores.” (TENGARRINHA, 2013:13) A par desta identificação o autor visou Não subalternizada em relação à literatura vários contextos explicativos, desocultando as e a qualquer forma de expressão artística, teias relacionais naquela que foi a “civilização a imprensa periódica (particularmente a do jornal”: Assim, a partir dos jornais como mais amplos meios de comunicação desse tempo, dedicámos particular atenção às grandes controvérsias ideológicas e políticas numa perspectiva de entrosamento e influência recíproca com a evolução, sob múltiplos aspectos, da sociedade portuguesa. O que quer dizer que nem fizemos deste trabalho uma mera resenha jornalística nem vimos a imprensa como um epifenómeno regido por leis próprias, em sistema fechado. (13) Tais princípios hermenêuticos tinham já influência dos jornais na consciência pública presidido à anterior edição, contudo acentua-se e nos acontecimentos políticos económicos e nesta última obra o tecer de um quadro histórico culturais. (TENGARRINHA, 2013: 17) alargado onde o prefácio que sequencia a introdução, explicita este pensar a imprensa nas José Manuel Tengarrinha não usa uma suas múltiplas faces, analisando-a como: “...um “hospitalidade acrítica”. Nos dados compilados dos meios mais valiosos para o conhecimento para a sua de uma sociedade nos seus múltiplos aspectos, devendo ser focado tendo em conta a sua ampliados na sua epistemicamente os campos: partir do seu grande surto na época liberal) é um poderoso veículo de transmissão de informações, de difusão de ideias, um amplo repositório dos conhecimentos e das sensibilidades do seu tempo, daí um dos mais expressivos avaliadores das atitudes mentais e das correntes de ideias na sociedade, para além dos círculos restritos. O que nos conduz à necessidade de avaliação da esfera e grau de História da Imprensa Periódica Portuguesa , e agora de novo compulsados e Nova História da Imprensa ARTE DOTEMPO

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101 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Portuguesa – Das Origens a 1865 , cumpre uma primórdios, comparando a prática portuguesa recepção do “novo” não acrítica, pois como à que ocorrera tanto em França como em defende Fernando Catroga: ele [o novo] vem morar numa terra já habitada por homens com racionalidade ética e com memória; e é pela comparação, logo suscitada pela pré-compreensão, que a qualidade de “aumento de ser” (Antero de Quental) que oferece deve começar a ser avaliada. Caso contrário, cair- se-á na reificação como novidade, como se o tempo fosse, tão-só, um infinito somatório de momentos sem passado e sem futuro entre si. (CATROGA, 2009: 263) Logo na primeira abordagem da História da Imprensa Periódica Portuguesa , se subscreve a historicidade das fontes, formulando, ainda que brevemente, contextos e temáticas. Assim, de imediato se referem os antecedentes, subdividindo-os em três partes, começando-se pelas folhas noticiosas manuscritas, seguindo- se as primeiras folhas noticiosas impressas e concluindo-se com almanaques, reportórios, calendários e prognósticos . 2 Num segundo momento, e tocando os primórdios pública; as limitações à liberdade de imprensa; da imprensa, José Manuel Tengarrinha aborda o primeiro período de vigência da Carta dezasseis temas. A saber: o primeiro jornal; Constitucional; a imprensa sob o miguelismo; o os mercúrios; a imprensa oficial; os primeiros jornalismo da segunda emigração; a situação de periódicos de crítica social; o período compromisso sob a regência de D. Pedro; o papel pombalino; o “enciclopedismo”; os periódicos do jornalismo no romantismo; quem lê os jornais; especializados; os periódicos humorísticos e intenso movimento jornalístico após 1834; novas de diversão pura; as publicações de pendor características dos jornais; as perseguições sentimental; os primeiros diários; durante as após 1840; sob o cabralismo; a imprensa ilegal invasões; as invasões à revolução; panfletos, durante a guerra civil; panfletarismo; jornalismo volantes e pasquins; o jornalismo da primeira literário de alcance político; a “Lei das Rolhas”; emigração; os regimes de censura; censores e a Regeneração e a imprensa; o jornalismo de censuras e privilégios; características gerais. província; a organização do jornal e a situação Deste modo, após ter categorizado as várias do jornalista; dificuldades técnicas e problemas publicações, ensaiou-se um quadro geral destes da imprensa periódica; a expedição e os portes Inglaterra. O terceiro momento agrupa o que o historiador denominou ser a imprensa romântica ou de opinião. A estratégia classificatória que adoptou, subordinada ao arco temporal de 1820 a 1865, oscila entre os marcos temporais da governação do reino à aproximação a um perfil do leitor. Não deixou de referir uma geografia de implantação dos periódicos, analisando a forma, e questões como as que se devem equacionar sobre o papel ou o uso da ilustração. São trinta e dois os tópicos que considera nesta secção, os quais se distribuem do seguinte modo: o jornalismo português quando da Revolução de 1820; a discussão do problema da imprensa nas Cortes; a primeira lei de liberdade de imprensa; súbito desenvolvimento da imprensa periódica; o estado da indústria tipográfica em Portugal; o programa vintista de reforma da instrução ARTE DOTEMPO 2 Refira-se que na análise que fazemos à estrutura tanto da História da Imprensa periódica portuguesa , como da Nova História da Imprensa Portuguesa - Das origens a 1865 sinalizamos exaustivamente a organização corporizada pelo autor nos respectivos índices das obras, pois os mesmos consubstanciam a estrutura organizacional do seu discurso analítico.

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102 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS de correio; a ilustração e a gravura; o papel; a do material investigativo compulsado nas obras situação da indústria tipográfica; os primeiros anteriores, outro que complementa a informação movimentos reivindicativos dos tipógrafos e a histórica, organiza-o segundo uma declarada primeira imprensa operária; a influência dos dimensão historiográfica. Esta estrutura continua jornais na opinião pública; o jornalismo no Brasil a seguir uma estrutura diacrónica, mas subscreve e nos outros domínios portugueses. A quarta e última parte deste primeiro exercício aparecimento das folhas informativas, privilegia- analítico é consagrada à fase industrial da se a evolução do movimento jornalístico. O imprensa. José Manuel Tengarrinha agrupa historiador reflecte sobre a sua especificidade, quinze tópicos, que vão desde o aparecimento contextualizando-a numa periodização evolutiva do Diário de Notícias ao momento que designa da história de Portugal, nomeadamente na sua como “Depois da monarquia”. A sua estrutura de dimensão política. abordagem segue de novo o ter em atenção as várias fases da produção do jornal, atendendo a Nesta última questões como o preço, os problemas suscitados divisão em quarto fases, agora categorizadas pelo incremento de uma indústria tipográfica, em: “Os primórdios”, ”O Nascimento da as reivindicações de um sector profissional, a Imprensa de Opinião”, “Liberais contra liberais” geografia da sua difusão e os diferentes propósitos e a “Regeneração Pacificadora (1851-1864)”, editoriais ou até a recepção dos leitores. Assim, que são subdividas em tópicos e subtópicos, os depois do enquadramento relativamente ao quais visam caraterizar o fenómeno jornalístico. aparecimento do Diário de Notícias José Manuel Nesta análise historiográfica flui a atitude de Tengarrinha sistematiza os seguintes tópicos: quem, como Fernando Catroga sistematiza, é o noticiário; objectividade e sensacionalismo; aquele que, como historiador a influência do jornal sobre o público; a venda dos jornais; o jornal de 10 réis; a publicidade; grandes progressos na indústria tipográfica; a alienação do jornalista no jornal moderno; lutas reivindicativas dos tipógrafos; o alargamento à província do movimento jornalístico; imprensa republicana; desenvolvimento da imprensa operária; a repressão sobre a imprensa no final da monarquia; e finalmente, “Depois da monarquia” . 3 Já na sua Nova História da Imprensa Portuguesa - Das origens a 1865 , ainda que tome, para além forma de gazeta, as primeiras folhas noticiosas um enquadramento histórico alargado onde, a par do historiar do fenómeno, atendendo-se ao História permanece a anterior não pode deixar de ser um sujeito pré-ocupado, a sua problematização já nasce no seio de várias memórias (sociais, familiares, locais, regionais, nacionais, transnacionais, etc.), incluindo aquelas que, de um modo mais espontâneo ou mais específico, inoculam ideias, valores e representações características da cultura histórica.(CATROGA, 2017: 70) Atente-se no modo como os primórdios da imprensa são por ele escalpelizados, tocando em primeiro lugar as origens das folhas informativas, onde refere as folhas noticiosas manuscritas avulsas, as cartas, os folhetos em ARTE DOTEMPO 2 Os apêndices desta História são um índice dos títulos de manuscritos e impressos periódicos ou noticiosos e o referente aos nomes dos autores, impressores, livreiros e censores.

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103 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ARTE DOTEMPO

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104 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS impressas e os primeiros periódicos impressos primórdios, José Manuel Tengarrinha destaca (almanaques, reportórios, calendários e prognóstico). Em segundo lugar, o historiador volantes, os pasquins e os primeiros diários, referencia os primeiros jornais, desde o modelo interrogando-se sob a forma como a notícia da gazeta e as repectivas gazetas da Restauração, é formulada sobre a recepção dos diferentes passando pelo Mercúrio Português fechando objectos jornalísticos, nomeadamente através da esta abordagem com o caso da Gazeta de Lisboa . síntese apresentada sobre a sua leitura e venda. Em terceiro lugar sinaliza o que considera Ainda neste balanço não deixou de sistematizar ser o “novo” século XVIII, com o surto do questões em torno do jornalista, da tipografia movimento periodístico, procurando categorizar e de uma possível categorização da imprensa as diferentes especializações em periódicos periódica no tempo de pré-romantismo. O perdominantemente noticiosos, enciclopédicos último tópico abordado nesta primeira fase do e instrutivos, filosóficos, literários, científicos e seu estudo é o do dealbar da imprensa no Brasil. técnicos, históricos, económicos, de recreação ligeira e o caso, que considera singular, de um Na segunda fase da sua jornal anarquista. Em quarto lugar, e sob o signo Tengarrinha discorre sobre o nascimento da das Invasões Francesas, José Manuel Tengarrinha imprensa de opinião, sendo de novo as marcas destaca a resistência oferecida na primeira temporais que funcionam como aglutinadores. invasão pelos panfletos, pasquins e jornais, São quatro os subtópicos examinados: o mencionando o que considera ter acontecido primeiro período Liberal (1820-1823); a após a primeira invasão, e não deixando de interrupção do regime constitucional (1823- assinalar a propaganda dos invasores. Em quinto 1826); o segundo período liberal (1826-1828); o lugar, o historiador toca o jornalismo da primeira regime miguelista e a guerra civil (1828-1834). emigração, sinalizando as perseguições, a No primeiro subtópico o autor disserta sobre difusão e influência, as redes de interesses o panorama geral da imprensa (1820-1823), o e dependências, as temáticas e orientações debate nas cortes constituintes e a primeira editoriais, o retomar do enciclopedismo com os lei de liberdade de Imprensa, aludindo aos anais das Ciências, das Artes e das Letras . Segue- se, em sexto lugar, a referência à crise (1811- 1820) onde o historiador aborda o combate sobre o facto de a comunicação surgir como ideológico pelo Antigo Regime, a ciência e um processo global, formando-se um espaço economia, a literatura e a diversão ligeira. Antecipando a oitava subdivisão desta primeira novo quadro político (1823-1826), ao movimento fase, o historiador refere a censura às folhas da imprensa, e ao que qualifica como jornalismo informativas, onde esboça os regimes, os seus liberal de emigração, fechando esta secção com órgãos e meios, os critérios seja os de defesa da observações gerais em torno dos panfletos, doutrina, da sociedade, ou do regime político, folhas volantes e pasquins. No tratamento do e os censores e censuras. No balanço a estes terceiro subtópico retoma o enquadramento as licenças e privilégios, os panfletos, as folhas História José Manuel grandes confrontos políticos e à repressão liberal. Não deixou igualmente de se debruçar público mediatizado. Por outro lado, no segundo subtópico procede à caracterização geral do ARTE DOTEMPO

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105 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS político e o regime censório (1826-1828), o que que foram pela primeira vez grátis, os jornais de acontecera após as “archotadas” e o balanço economia e o modo como a questão colonial foi do movimento jornalístico. Esta segunda fase evidenciada em títulos autónomos, os periódicos conclui a descrição dos anos de 1828-1834. Aí, científicos, jurídicos, religiosos, enciclopédicos, para além de se sintetizar os principais vectores femininos, recreativos, de instrução ligeira e sobre a imprensa no continente durante o regime satíricos, de divulgação histórica, os musicais, miguelista, categorizam-se periódicos e séries os dedicados ao ensino artístico, ou ainda os políticas, e ainda temáticas como literatura, jornais de utilidades, para além dos periódicos artes, economia e ciência, focando-se ainda literários, entre os quais os especificamente os jornais liberais da emigração em Londres e teatrais e os domínios abrangentes da literatura. Paris, os órgãos oficiais dos Açores e a imprensa liberal no continente até à derrota de D. Miguel. A terceira fase desta História é elaborada sob o 1851, contextualiza o novo regime da Carta, grande tema de liberais contra liberais e sub- divide-se em a abertura à contemporaneidade políticos, as tendências republicanizante e (1834-1842) e do Cabralismo à Regeneração socializante, a imprensa legitimista/realista, as (1842-1851). No primeiro subtópico menciona-se limitações legais e administrativas à imprensa a primeira etapa da modernização (1834-1836), política, o jornalismo literário, os periódicos detalhando-se o que o historiador considera ser teatrais a difícil implantação da liberdade de imprensa, a luta pelo poder da imprensa política, a nova médicas; económicos; satíricos; noticiosos; linguagem política, a imprensa que define como jornais de anúncios; religiosos; femininos). miguelista, os periódicos literários, culturais, de Igualmente neste âmbito deparamo-nos com instrução, científicos, recreativos e femininos e o os jornais fora do continente, o jornalismo despertar da questão africana. Após os anos de 1834-1836 José Manuel secção dedicada à análise de quem, entre 1842- Tengarrinha analisa o que interpreta como o 1851, lê os jornais. agudizar dos confrontos políticos na imprensa, isto é, a imprensa cartista, setembrista, Na terceira secção examina o período da guerra miguelista/legitimista, os jornais políticos civil (1846-1847) e a imprensa clandestina e independentes e o germinar da imprensa ilegal, considerando as primeiras folhas, o republicana. O autor refere igualmente o que periódico o acontece para além do continente e apresenta o Lisboa, assim como o que teria sido publicado balanço relativo à imprensa política, bem como nas províncias, nos territórios insulares. Para as perseguições que esta sofreu depois de 1840. além desta organização geográfica, José Manuel Não deixaram de ser elencadas as possíveis Tengarrinha procede à sinalização dos folhetos categorizações de periódicos em noticiosos, os e panfletos, não deixando de elaborar uma Ainda na terceira fase, na segunda subdivisão, a qual se debruça sobre os anos de 1842- particularizando o endurecimento dos confrontos e outros géneros (belas/artes; instrutivos/recreativos; enciclopédicos; ciências romântico, destacando-se o caso de António Rodrigues Sampaio, surgindo ainda uma última Espectro e a restante imprensa de ARTE DOTEMPO

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106 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS apreciação global em torno desta subdivisão. Esta terceira fase encerra-se com o estudo da associativismo operário e o municipalismo. imprensa entre os anos de 1847-1851, entendidos como o momento da passagem do caos à No segundo subtópico, em torno da economia reconstrução, categorizando as publicações em e progresso, José Manuel Tengarrinha refere o as que integraram o movimento da imprensa que apelida de grande impulso do jornalismo política, as que defenderam o cabralismo ou o económico, a par do primado do comércio e do anti-cabralismo, os unionistas e antiunionistas, debate sobre o proteccionismo e a liberdade as publicações que participaram nas campanhas comercial. O autor assinala a atenção que foi dada jornalísticas contra Costa Cabral, e observa os à indústria, ao fomento agrícola e às reformas processos de aplicação da “lei das rolhas”. Após a enumeração dos primeiros jornais que publicação da imprensa periódica, destaca se declararam abertamente republicanos, José a eclosão do que acontece na província e os Manuel Tengarrinha inventaria os periódicos fenómenos identificados na imprensa insular que qualifica de socializantes, “operários” e tanto nos Açores como na Madeira. federalistas, literários, instrutivos e recreativos, bibliográficos, femininos, para além dos que Por último, e antes da elaboração de um breve abordam a arqueologia. Contudo, a enunciação/ caracterização não se encerra aqui, prosseguindo pluralidade de géneros, destacando a presença com a referência aos periódicos “populares”, massiva da literatura, o modo como o folhetim satíricos, musicais, os que se dedicam às se desenvolveu, os jornais teatrais, o jornalismo belas-artes, teatro e outros espectáculos, os musical, os jornais femininos, de instrução e económicos, de medicina, militares, religiosos e recreio, de temática histórica. Nesta enunciação os que são publicados fora do continente. A quarta e última fase da sua História disserta social e política, ou ainda os que apelida de sobre o que o historiador apelida de Regeneração jornais domingueiros, os periódicos científicos pacificadora (1851-1864). Em quatro subdivisões e a “batalha da homeotapia”, a legislação e toca as convergências e rupturas, as questões jurisprudência, a imprensa militar e o que centrais relativas à economia e progresso, considera ser a “nova relação entre o militar e o a descentralização operada na publicação político” a par da imprensa noticiosa. de periódicos, e, por último, designa o aparecimento de uma maior diversificação de Abrindo as portas ao que determina como genéros jornalísticos. Logo na primeira secção a transição para o jornalismo moderno José anota o que classifica ser o compromisso como Manuel Tengarrinha elabora um balanço final paradigma político, referenciando, para além onde, para além das condições materiais, do da imprensa legitimista e o modo como a papel/estatuto do jornalista e das reivindicações questão religiosa foi questionada, as tendências profissionais dos tipógrafos, estabelece as linhas republicanistas e socializantes, o “iberismo”, o financeiras. Ao tocar na terceira subdivisão as questões em torno da desconcentração da balanço, José Manuel Tengarrinha analisa a são também identificados para além dos periódicos dedicados às belas-artes, à sátira de leitura para o devir, visto ARTE DOTEMPO

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107 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS o jornal ganha[r] uma outra dimensão quando, além do interesse pela esfera pública, passa a atingir também o da esfera privada ou o do domínio privado de figuras públicas. Ao adquirir uma vertente intimista, a imprensa ainda mais se desloca para o centro da vida familiar e privada. O que significa uma nova viragem da imprensa periódica no sentido da contemporaneidade. (TENGARRINHA, 2013: 880) Esta é, afinal, a contemporaneidade que ele vivencia até ao dia 29 de junho de 2018, quando faleceu em Lisboa. Permanecem os escritos do historiador da “civilização do jornal” em Portugal; aquele que estabeleceu as balizas hermenêuticas de um tempo, problematizando-o, num sempre constante exercício analítico, atento aos enquadramentos gerais e ao detalhe, manuseando a dimensão temporal a par da sequência. Ele foi o artífice que procurou ler num equilíbrio possível, os contextos gerais e a “nervosidade do processo social”. ARTE DOTEMPO BIBLIOGRAFIA BACHILO, P.-Y. e PROULX, S. (2006). Mondialisation de la communication : à la recherche du sens perdu , HERMÈS 44, 47-54 CATROGA, F. (2009). Os passos do Homem no restolho do tempo-Memória e fim do fim da História. Coimbra: Almedina ___________________ (2017). “O Historiador na cidade : História e Política”. MATOS, S. C. e JOÃO, M. I. (org.) Historiografia e Res Publica . Lisboa: CH-CEMRI, 27-86 DELACROIX, C. (2010). “Histoire sociale”, DELACROIX, C. et al (org.) Historiographies- concepts et débats. Paris: Gallimard, 420-435 LEMOS, M. M. (2009). Candidatos da Oposição à Assembleia Nacional do Estado Novo (1945- 1973). Um Dicionário. Lisboa: Divisão de Edições da Assembleia da República e Texto Editores, Lda MONTEIRO, N. G. (2017). “A História social em Portugal (1779-1974) - Esboço de um itinerário de pesquisa”. MATOS, S. C. e JOÃO, M. I. (org.) Op. Cit., 183-200. MULHERN, F. (2000). Culture/metaculture. London: Routledge THÉRENTY, M.-E. (2014). «La Civilisation du Journal entre Histoire et Littérature- Perspectives et prospectives», French Politics, Culture & Society , 32-2, special issue: French Studies and its Futures, 49-56 RICOEUR, P. (2000). La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éditions du Seuil ___________ (2019). Teoria da Interpretação - O discurso e o excesso de significação . Lisboa: Edições 70 RIOUX, J.-P. e SIRINELLI, J.-F. (1998). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa Tengarrinha, José (1989). História da Imprensa Periódica Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho. WEBGRAFIA: Diário de Lisboa , in http://casacomum.org/cc/ diario_de_lisboa/ (consultado a 24-1-2019) Seara Nova in http://ric.slhi.pt/Seara_Nova/ revista (consultado a 24-1-2019) Diário Ilustrado , in http://hemerotecadigital. cm-lisboa.pt/Periodicos/DiarioIlustrado/N1/ N1_master/DIlustradoN1.pdf (consultado a 8-2-2019) Diário de Lisboa in http://casacomum.org/cc/ arquivos?set=e_529#!e_566 consultado a 8-2- 2019)

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108 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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109 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO

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111 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS biker celebrants of the Concentração de Motos in Faro, Ted was continuously inspired to capture a visual story. In 2012, Ted photographed all of beautiful Canada’s provinces for a new series entitled “Canadiana” with first edition prints auctioned for the Herbie Fund Charity at the Hospital for Sick Children in Toronto (SickKids). This series brought him between the world’s longest coastlines, from the east’s land’s end ay Peggy’s Cove in Nova Scotia and as far west as Bennett Lake – only reachable by floatplane over the icefalls and glaciers of Yukon. Ted Witek (1957 –) was born and raised in Connecticut. He left the United States for Germany in 2001, moving to Portugal in 2004. He immediately fell in love with the country and its people. Having the artistic good fortune to travel many times to the North and South of Portugal as well as to Madeira and the Azores, Ted found the country among the most visually stimulating places he had visited. Whether watching youngsters jumping from all heights in the hot sun into the Douro River, discovering an abandoned mannequin factory in Chiado, awaiting fishermen returning to shore in Sesimbra long before sunrise, or observing the QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO North South, East West 1 TED WITEK - HILDA YASSERI 2 1 Excerpts from the catalogue of Ted Witek – North South, East West. 2 Curator of Ted Witek’s Cascais exhibition.

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112 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO CASA DA MÚSICA - O Porto, 2005 Impressão em gelatina e sais de prata em papel baritado / Gelatine Silver print, baryta paper, 50 x 60 cm

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113 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO CANADÁ - Saint James Hotel #1 Montreal, 2012 Impressão em gelatina e sais de prata em papel baritado / Gelatine Silver print, baryta paper, 50 x 60 cm

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117 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS seu efeito ou conteúdo, mas porque estávamos já entregues ao sonho antes de nos tornarmos espectadores (104). Segundo a diarística barthiana, nas salas de cinema acontecem-nos coisas porque lá fomos esperar que essas coisas nos acontecessem. Aquelas salas, escuridão oferecida de mão cheia, são lugar privilegiado para a epifania, que mais não é, no texto de Barthes, do que o encontro do sujeito consigo mesmo. O autor descreve a sua posição em relação à tela como a daquele que cola o nariz ao espelho, unindo-se a um outro imaginário com o qual, narcisicamente, se identifica (106). O fascínio que se sente perante o “espelho do ecrã” vem de nele vermos simultaneamente o eu e o outro (106). Se semelhante visão do cinema parece pecar por utilitária e sobretudo egotista, esta descida às profundezas da sala escura descrita por Barthes tem a virtude de se fazer acompanhar da correspondente subida à superfície, do regresso. A saída do cinema fecha o circuito percorrido pelo sujeito, completa o duplo movimento de entrar em si e sair de si. A saída dá-se, contrariamente à mais inócua entrada, depois da comunhão com o filme. Dessa comunhão e dos seus frutos se falou no ciclo “O escritor na sala Num texto de 1975, “En sortant du cinéma”, Roland Barthes (Barthes 1975, 104-107) assume- se como amador do momento em que se sai do cinema, mais do que do momento em que se entra. A saída é descrita por ele como disruptora de um estado anterior de completa abstração. Caminha-se em silêncio, com o corpo rígido, entorpecido, diz. Saímos da caverna, embrulhamo-nos no nosso agasalho, porque as ruas estão frias e pouco iluminadas. Entra-se no cinema por uma inclinação para a preguiça, por um sentimento de “vazio, indolência e inactividade”(104). Sai-se do cinema como um gato sonolento, desorientado, como quem sai de um estado de hipnose, que, diz o autor, embalou a melancolia, mas através do qual, simultaneamente, se procurou a cura (104). A descrição que Barthes faz da sala de cinema como lugar da hipnótica e hipotética resolução de um desencontro entre um sujeito e as partes de si que desconhece (104) depende não exactamente de atribuir àquele espaço um carácter sagrado ou intocável, mas de apresentá- lo como o espaço onde o sujeito, que deambula, indolente, encontra o tempo para se entregar ao sonho que já trazia consigo. Sonhamos, escreve Barthes, não por ver o filme ou por causa do BRISAS Escritores e a Sala de Cinema RAQUEL MORAIS 1 1 Investigadora e programadora.

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118 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS de cinema”, que organizámos na Primavera de O ciclo abriu com uma sessão dedicada a Ana 2018, no Centro Cultural de Cascais, como parte Teresa Pereira e das actividades da Cátedra Cascais Interartes. Hitchcock que é, por sua vez, a epítome do O ciclo abordou as relações de seis escritores enigma e da sacralização. A obra de Pereira é portugueses com a sétima arte: Ana Teresa habitada pelo cinema clássico e pelos romances Pereira, Ruy Belo, Herberto Helder, António Reis, policiais, de que a escritora se serve não como Carlos de Oliveira e Ana Hatherly. Para estes autores, a imagem em movimento reais. Há nos seus livros a revisitação de lugares foi importante de diferentes formas: fundadora que, nas suas palavras, se tem a impressão de de uma estética, modeladora de um modo de conhecer muito bem, seja porque se leu sobre trabalho ou simples elemento de inspiração. O eles ou até porque os vimos numa sala de cinema. ciclo convocou tanto filmes que influenciaram Sobre o imaginário dos escritores evocados, como existência de uma mulher e de um lugar, sobre filmes que nos permitiram revisitar a sua as fabricações de quem vai ao cinema e de obra, iluminando-a. Se podemos ver na figura quem lê, escreve Amândio Reis em “Reviver o do escritor um espectador particularmente futuro em Manderley: Ana Teresa Pereira, Alfred propenso à acção, que age sobre aquilo que Hitchcock e Daphne du Maurier”. através do cinema lhe chega, essa relação pode tomar contornos muito diversos – a série de Desses lugares que achamos terem existido autores programados pretendeu precisamente é também feita a obra de Ruy Belo, segundo dar conta dessa amplitude. As sessões que compuseram o ciclo abriram autêntico e intocado. Mas o filme de Alain com palavras de seis convidados que, por Resnais apresentado nessa sessão, caminhos também diferentes, se têm dedicado às relações entre a palavra e a imagem. Este de Belo do poema «Muriel», “Terá mesmo primeiro número da revista da Cátedra Cascais existido o sítio onde estivemos?”. O filme Interartes conta com quatro desses textos, um tortura-nos com a enunciação do que passou, dos quais inserido no caderno dedicada a Ana como o jovem Bernard, cismando na memória da Hatherly. Eles são também fruto de uma descida amada. Neste dossier, cabe a Teresa Bartolomei, à sala escura, de um encontro entre os nossos em “Muriel, ou da Poesia - O reencontro como convidados e os pares que lhes propusemos ou desencontro necessário – Ruy Belo e o cinema”, devolvemos como motes para uma reflexão que, explorar os encontros e desencontros entre pretendendo fazer do escritor uma figura menos o poema de Belo e o filme de Resnais, sendo sacralizada e enigmática, se debruçasse sobre o um dos elementos centrais dessa articulação a modo que cada autor encontrou de falar sobre o condição de espectadores que caracteriza poeta cinema ou sobre o que este lhe trouxe. Rebecca , o filme de Alfred referências estáticas, mas como pequenos mundos imaginários que recupera e torna Rebecca e as efabulações envolvidas na autor abordado. Os filmes são muitas vezes, na linguagem de Belo, o lugar do tempo feliz, Muriel ou o tempo de um regresso , pergunta, como o verso e personagens, condição que atribui ao objecto observado um fulgor e uma plenitude que lhe BRISAS

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119 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS são, na verdade, alheios, que existem apenas nos Cores»: confrontado com as mudanças de cor do olhos de quem o vê. De Belo passámos, na terceira sessão, a outro possíveis correspondências entre a obra de poeta, Herberto Helder, cujo interesse pelo Helder e cinema e a apropriação de formas de trabalho por Rosa Maria Martelo e serão oportunamente e da linguagem específica daquela arte foram publicadas num número posterior desta revista. já objecto de diversos estudos. Helder é, dentro do panorama da literatura portuguesa, caso A escrita de António Reis, figura evocada na importante para pensar a relação da poesia com quarta sessão, partilha com o cinema do japonês o cinema e com a imagem. Um dos realizadores Yasujiro Ozu, cineasta apresentado nesta sessão, que possivelmente melhor lhe servem de par uma clareza e, simultaneamente, um desejo de é Jean-Luc Godard, pelo modo como reflecte ocultação, que nos fizeram repensar de que modo sobre a relação do cinema com a poesia. Em meios tão distintos quanto a palavra e a imagem Adeus à linguagem , filme exibido na terceira podem tecer-se com iguais artifícios. Além de sessão, dois níveis, natureza (visível, real) e poeta e cineasta, Reis foi também professor na metáfora (invisível, imaginado) coabitam, questionando os limites do lado vizinho. O aulas, das quais se diz que tinham programas lado da metáfora recupera, para corrigir ou curriculares de poucas linhas, giravam em torno corromper, o lado da natureza. Pintar não o que de uma lista de filmes que Reis e Margarida se vê, mas aquilo que não se vê, toma Godard Cordeiro, companheira de vida e de trabalho, emprestado de Monet, lembrando obliquamente tinham como essenciais. No contexto da recente o pintor de um texto de Helder, «A Teoria das reedição de seu modelo, um peixe que de vermelho passou a preto, decide por fim pintá-lo de amarelo. As Adeus à linguagem foram abordadas Escola Superior de Teatro e Cinema. As suas Poemas Quotidianos , publicado BRISAS

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120 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS pela primeira vez em 1967, regressámos a um parte de qualquer representação do mundo. A dos filmes dessa lista: O Gosto do Saké , último sessão, apresentada por Clara Rowland, ecoa filme de Ozu, história de um pai viúvo que um texto da investigadora publicado no número decide tentar casar a filha. A contenção formal que a revista Colóquio Letras dedicou a Carlos dos filmes de Ozu e dos poemas de Reis, obras Oliveira em 2017. de tom tão próximo, é resultado de demorado apuramento. Em ambos os casos, a aparente A sessão de encerramento do ciclo focou-se na simplicidade constrói-se sobre aquilo que é artista e poeta Ana Hatherly. “O meu trabalho silenciado: sob a placidez dos pares, das casas e começa com a escrita – sou um escritor que deriva das paisagens subsiste sempre uma tensão. Esta para as artes visuais através da experimentação sessão contou com a apresentação de Fernando com a palavra”, afirmou (Hatherly, 1981: J. B. Martinho, autor do prefácio da reedição dos 265). Em alguns dos seus textos sobre poesia poemas de Reis. Da conjugação de um traço rigoroso e daquilo poderíamos à primeira vista imaginar distantes que escapa a essa sistematicidade se compõe da poesia, como os do cinema experimental. também a obra de Carlos de Oliveira. Em alguns As explorações desses campos debruçam-se textos do autor encontramos o cinema como sobre as relações, tensões ou alternâncias entre elemento que ajuda a pensar o ofício do escritor: imagem e texto, entre ver e ler: se a poesia o filme da quinta sessão, O sol do marmeleiro, concreta considera fazer de um poema um modo de Víctor Erice, serve de mote para pensar a de inscrição no espaço, o cinema experimental, aproximação entre as figuras do escritor, do inversamente, diríamos, ambiciona por vezes pintor e do cineasta através de problemas apresentar-se como uma forma de escrita. É que lhes são comuns. No romance de Oliveira, nos espaços entre essas duas dimensões que Finisterra-paisagem e povoamento , lê-se: “Nas se inscreve um conjunto de filmes que Hatherly relações sujeito-objecto, o sujeito faz parte da realizou nos anos 70, durante o tempo passado realidade e sem ele (que sente as coisas) nada na London International Film School e em anos faria sentido” (Oliveira, 1978: 27). Num livro em subsequentes. Dessa série de curtas-metragens que as personagens se ocupam de tentativas criadas pela artista, onde se incluem trabalhos de figurar a realidade através de diferentes de animação ou até exercícios de pintura sobre meios – o desenho, a fotografia, a gravura –, a película, apresentámos nesta sessão o filme reflexão sobre o processo de representação é constitutiva do próprio livro. Também o filme de Alves de Matos, Ana Hatherly – Erice acompanha a criação de um quadro que A sessão, apresentada por Elisabete Marques nunca virá a ser concluído. Seguindo o decurso tem a sua inscrição em “Ana Hatherly e a escrita dos dias do pintor António Lopez Garcia e as em cinema”. transformações do marmeleiro, o filme, como Finisterra, pensa de que forma elementos como Enquanto organizadora do ciclo, gostaria de a memória, o sonho ou o próprio tempo fazem agradecer a todos os autores que responderam concreta, Hatherly partilha preocupações e referências com campos artísticos que Revolução , a par de um documentário de Luís A mão inteligente . BRISAS

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121 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ao convite de apresentar as sessões e de contribuir com os seus textos para este dossier: Amândio Reis, Teresa Bartolomei, Rosa Maria Martelo, Fernando J. B. Martinho, Clara Rowland e Elisabete Marques, bem como ao professor Mário Avelar e a toda a equipa da Cátedra Cascais Interartes, por abrirem este importante espaço de reflexão sobre a literatura e o cinema. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland, “En sortant du cinéma”, in Communications , 23, 1975, “Psychanalyse et cinéma”, pp. 104-107. CASTRO, E.M. de Melo, HATHERLY, Ana (org.) 1981. PO-EX – Textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa . Lisboa: Moraes Editores. OLIVEIRA, Carlos de. 1978. Finisterra. Paisagem e povoamento , Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. FILMOGRAFIA Adieu à language (Adeus à linguagem), realizado por Jean-Luc Godard, 2014, 70 min. Ana Hatherly – A Mão Inteligente , realizado por Luís Alves de Matos, 2003, 50 min. El sol del membrillo (O sol do marmeleiro), realizado por Victor Erice, 1992, 140 min. Muriel, ou Le Temps d’ un Retour (Muriel ou o tempo de um regresso), realizado por Alain Resnais, 1963, 116 min. Rebecca , realizado por Alfred Hitchcock, 1940, 130 min. Revolução , realizado por Ana Hatherly, 1975, 11 min. Sanma no aji (O Gosto do Saké), Yasujiro Ozu, 1962, 112 min. BRISAS

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123 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS contemporâneos se tem vindo a denominar “remediação”, pelo que se entenderia, neste caso, e num primeiro entendimento do fenómeno, a passagem à escrita de enredos e personagens cinematográficos. Ele representa, antes, uma transfiguração dos filmes em causa, cujos resultados assumem contornos por vezes quase irreconhecíveis, colocando-nos perante textos derivativos que, ainda assim, são pouco correlacionáveis, ou relacionáveis apenas de viés, com o original fílmico. A um nível mais profundo deste processo, a volta que marca a reescrita de Ana Teresa Pereira figura-se também como uma resposta, ou, mais concretamente, como uma réplica a obras precedentes, na expressão de um mecanismo criativo que, claramente, toma o discurso literário e a forma ficcional, em alternativa à crítica ou ao ensaio, como meio de comentário, isto é, como forma de reflectir sobre si mesmo e sobre essas obras pensando com elas . Ainda que a ficção de Ana Teresa Pereira seja caracterizada, em termos gerais, por uma aproximação essencial ao cinema, encontramos no repertório da autora, em particular naquele publicado em anos recentes – possivelmente, a partir de O Fim de Lizzie (Relógio D´Água, 2008), tríptico de contos que inclui uma readaptação de Blade Runner (1982), sem descurar traços do romance original de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968) –, obras que desenvolvem esta relação entre literatura e cinema a um nível mais profundo do que o da inspiração ou do pastiche. Falo de obras que se constituem integralmente como reescritas daqueles que são os filmes fundamentais no universo temático e no imaginário – usando o conceito de imaginário enquanto arquivo de imagens, cenas e figuras – de Ana Teresa Pereira. O prefixo crucial do termo reescrita nunca remete, contudo, em Ana Teresa Pereira, para um gesto simplificado do que nos estudos interartísticos BRISAS Reviver o futuro em Manderley: Ana Teresa Pereira, Alfred Hitchcock e Daphne du Maurier AMÂNDIO REIS 1 1 Investigador

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124 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS O carácter infiel, por oposição a reverencial ou Hitchcock, dialogando também com o romance meramente – e, dir-se-ia, pós-modernamente – epónimo de Daphne du Maurier (de 1938) do parasítico, das furtivas apropriações da autora qual ele fora adaptado, dando, porém, uma volta conhecera já um estatuto paradigmático nos dois ao parafuso do modo subjectivo da narração que contos dos ciclos Fairy Tales (Black Sun, 1996) e esses dois objectos de partida colocam em cena Ghost Stories (ambos compilados na colectânea de maneiras diferentes mas conexas. A Coisa Que Eu Sou , Relógio D’Água, 1997) em que Ana Teresa Pereira descreve e comenta Há que recordar, a propósito desta última questão, um filme de Alfred Hitchcock e outro de David que tanto o romance como o filme partem de Cronenberg que nunca foram realizados, usando um enunciado originador da protagonista. Seja para o efeito marcadores suficientes para através da narração na primeira pessoa, no persuadir qualquer leitor familiarizado com a primeiro caso, seja, no segundo caso, através obra destes cineastas a tomar a existência dos da voice over que abre e fecha o filme numa filmes em causa como factual, e, eventualmente, tentativa de recriar cinematograficamente esse a partir na demanda infrutífera de os visionar modo subjectivo do discurso literário, entramos fora da página escrita, afinal, sua única morada. no mundo ficcional de Refiro-me aos contos “O ponto de vista das gaivotas” e “She Who Whispers”, em que se passado a protagonista e narradora: “Last night disserta, respectivamente, a propósito dos I dreamt I went to Manderley again” (Maurier, supostos Nightmare , de Hitchcock, estreado 2003: 1). em 1947, e The Double, de David Cronenberg, estreado em 1985. Sendo menos borgesiana, na medida em forma à narrativa ou à demonstração visual que já não recorre a obras imaginárias, não que se lhe seguem, entrará em competição e é menos inventiva e atraiçoadora, contudo, em paralelismo directos com um outro acto de a apropriação da autora de filmes que fala – elidido no filme, mas crucial no romance conheceram efectivamente a projecção na tela, de du Maurier – que aprofundará o mesmo laço como se pode verificar em obras mais recentes, que une e separa as figuras de como Inverness (Relógio D’Água, 2010), texto protagonista sem nome, sua substituta enquanto em que Ana Teresa Pereira reconverte em nova esposa de Max de Winter, e, ao contrário drama de palco e de bastidores – de certo modo daquela, contadora da sua própria história. literalizando a teatralidade que lhe é inerente Retenhamos, por agora, a ideia de que é essa – a trama de representação e o jogo de faz-de- conta de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock. É nos conduz também “de volta a Manderley” sob também nesta linha de ficções que se inscreve O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Relógio D’Água, do onirismo, e, por implicação, da fantasia, ou, 2008), romance que se desenvolve directamente mais rigorosamente, do conto de fadas. Isto é, a a partir de Rebecca (1940), o real filme de porta de entrada em Rebecca por via desse abre-te, sésamo que transporta também ao Veremos adiante que este acto de fala performativo, no sentido em que actua dando Rebecca e da frase que, como ignição do sonho-transporte, os auspícios da rememoração, mas, sobretudo, Rebecca – com contornos BRISAS

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125 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS particularmente sugestivos no filme de Hitchcock, possessed of a sudden with supernatural powers em cuja abertura o espectador é conduzido and passed like a spirit through the barrier por um travelling em câmara subjectiva através before me” (Maurier, 2003: 1). dos portões e ao longo dos jardins da mansão (Fig. 1), mergulhando numa estética que é Do mesmo modo que os espíritos e os claramente (mesmo de acordo com os padrões sonhadores, espectadores e leitores não podem do cinema clássico) de estúdio e de maqueta senão compartilhar o poder da narradora – é a descrição do sonho regressivo da sua quando os seus olhares (isto é, o seu exercício protagonista, que antecede a apresentação dos de visionamento ou de leitura) atravessam factos da história, constituindo-se ainda como a também os portões de Manderley para aceder porta de entrada na imaginação de um fantasma. a uma miragem, manifestando a capacidade Não o fantasma de Rebecca, mas o fantasma involuntária – porque constitutiva – que aproxima vicário da sua substituta viva, espectralizada e define essas quatro categorias de relação nesse sonho de regresso em que também nós com a fantasia. Espíritos, sonhadores, leitores e participamos enquanto hóspedes de uma casa e espectadores são, em essência, recipientes de um relato que nos levam a imitar, forçosamente, os passos da sua autora quando também a congeneridade, e, no limite, a esta nos diz: “Then, like all dreamers, I was indistinção entre formas diversas de designar a passadores de fronteiras. A partilha dessa condição denuncia BRISAS Fig. 1 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock

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126 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS mesma função: a de testemunhas participantes, concretizar pela inexorável falta de réplica da ou seja, cúmplices, de um pacto ficcional parte da mulher morta, tida como grande fenda orquestrado para tornar como fantasmas (“like ou intervalo afásico do romance original. a spirit”) não só os que nele intervêm, mas também os que a ele assistem e nele colaboram. Adicionalmente, o que Ana Teresa Pereira faz em eles, no entanto, o seu nome, e, por conseguinte, O Verão Selvagem dos Teus Olhos é precisamente a sugestão denegada de um retrato e de um virar do avesso a dinâmica entre emudecimento protagonismo que não lhe são oferecidos –, Ana e eloquência que determina, no romance de du Teresa Pereira escreve de Maurier e no filme de Hitchcock, a relação entre Maurier, enquanto a sua protagonista, elevada a primeira mulher, já desaparecida – portanto, ao papel de narradora, conta a sua história de silenciada – no momento em que a narrativa tem início, e a segunda mulher, narradora na primeira romance e do filme que antecederam pessoa e contraponto discursivo a esse novelo de opacidade que, em termos linguísticos e a esta inversão de perspectiva é clara e imagéticos, envolve a sua antecessora, Rebecca. A este respeito, a dedicatória do romance, género e de apropriação literária, que recupera “para Daphne du Maurier” – numa dinâmica a voz de Bertha Mason/Antoinette Cosway semelhante à que subjaz à ideia de reescrita contra a de Jane Eyre, no romance de Charlotte tal como a usei aqui antes – afigura-se, por um Brontë. Com efeito, numa crónica escrita muito lado, um gesto de devoção, de reconhecimento antes de e de homenagem, e, por outro lado, também um que prenunciava este romance, Ana Teresa endereçamento formal à autora inglesa: ou seja, Pereira referia-se já ao uma missiva em forma de livro, como resposta ( a uma anterior missiva sem destinatário certo. texto que se conforma também com um acto de Em suma, este romance na voz de Rebecca é a redenção: “Jean Rhys não se limitou a escrever resposta de Ana Teresa Pereira a Rebecca , o livro um romance belíssimo sobre o amor, o desejo, a de du Maurier, que coincide com o testemunho loucura, a condição da mulher no século XIX, o da mulher sem nome interpretada no filme de medo da natureza e da mulher identificada com Hitchcock por Joan Fontaine. Substituindo-se os a natureza, ela libertou uma personagem do seu nomes das autoras reais pelos das protagonistas pesadelo” (Pereira, 2002: 25). e autoras ficcionais de cada relato, o que encontramos aqui, então, é ainda a resposta de No entanto, enquanto proposta literária, o que Rebecca à mulher que, sendo tão diferente de Ana Teresa Pereira oferece em si, tomou o seu lugar em Manderley, ensaiando um circuito de comunicação que, antes do Rhys levara a cabo em V trabalho de Ana Teresa Pereira, não se pudera não se devendo isto apenas ao facto de a autora Assim, dando a voz a Rebecca – a grande ausente de um romance e de um filme que carregam com volta a Daphne du volta à protagonista e narradora sem nome do O Verão Selvagem dos Teus Olhos . A ideia subjacente assumidamente inspirada no romance de Jean Rhys, entretanto celebrizado pelos estudos de O Verão Selvagem dos Teus Olhos , e Vasto Mar de Sargaços Wide Sargasso Sea , 1966) como, em suma, um O Verão Selvagem dos Teus Olhos é muito diferente do que Jean asto Mar de Sargaços , BRISAS

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127 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS portuguesa não se limitar a oferecer o ponto pode tornar uma contadora de histórias. de vista alternativo de uma mulher injustiçada, diabolizada, em relação à qual o leitor pode enfim Assim, nos dez capítulos narrados na primeira sentir alguma comiseração, e, até, compreensão. A redenção de Rebecca processa-se justamente deambulação pelos corredores da casa, a sua na dádiva de voz a que me referi antes, no quadro convivência ininterrupta com os cães, que a narrativo de O Verão Selvagem dos Teus Olhos , continuam a reconhecer depois de morta e, num momento em que o acesso a essa voz seria simbolicamente, a testificar mudamente, na já sumamente impossível. Quem nos fala, aqui, é esfera natural e instintiva – aquele que sempre o fantasma de Rebecca, que habita e assombra fora, no fim de contas, o habitat de Rebecca um espaço-tempo textual contemporâneo do –, a sua presença na mansão, e, finalmente, a romance de du Maurier, e não anterior a ele, como chegada da nova esposa de Max de Winter, bem acontece no romance de Jean Rhys (e ao qual, como a forma como esta passa a ocupar, em por isso mesmo, se oferece frequentemente a vários sentidos, o seu lugar, confundindo-se e designação de prequela) em relação a Jane Eyre . competindo com ela. É certo que, no que toca ao tempo diegético, o final de Vasto Mar de Sargaços coincide também Complexificando a estrutura dúplice do romance, com um dos segmentos do romance de Charlotte outros dez capítulos cingem-se à juventude e ao Brontë, acompanhando, do ponto de vista de passado da heroína, e, intercalados com estes Antoinette, a chegada de Jane Eyre a Thornfield em que Rebecca se dirige a nós em primeira Hall. Inspirando-se nesta estrutura, que tem mão, são narrados numa terceira pessoa como eixo central um momento de sobreposição aparentemente extradiegética que, no entanto, entre os dois textos em causa, Ana Teresa Pereira nos oferece vários indícios – em particular, num introduz-lhe, contudo, a diferença fundamental passo em que a pessoa verbal oscila da terceira de originar a narração da sua obra na voz para a primeira indevidamente (Pereira, 2008: 57) póstuma da protagonista-narradora, baseando a – de que estamos, ainda assim, a ler as palavras relação intertextual entre O Versão Selvagem dos Teus Olhos e Rebecca na figura da assombração de si mesma, falando na primeira pessoa – e não na do palimpsesto, como acontece enquanto fantasma-narrador, mas referindo- entre Vasto Mar de Sargaços e Jane Eyr e –, e se na terceira pessoa enquanto personagem concretizando em pleno a dimensão espírita do historicamente circunscrita, Rebecca encontra- acto de narração que no romance de du Maurier se consubstanciada no mundo ficcional e na surge apenas (muito embora com implicações história pessoal – aquilo que profundamente lhe importantes) como uma comparação (“like a faltava antes, e que continua a faltar à narradora spirit”). Isto é, se é na condição de contadora de do romance de du Maurier, uma mulher histórias que a segunda mulher de Max de Winter eminentemente se pode assemelhar a um espírito, é na condição reconstitui para nós em de espírito que Rebecca, a primeira mulher, se pessoa, por Rebecca, esta relata-nos a sua presente assombração de Manderley, a sua de Rebecca. Ora narradora, ora personagem desconhecida – que a própria O Verão Selvagem dos Teus Olhos. BRISAS

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128 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Posto em contacto imediato com o fantasma de à hierofania em que consiste a sua narração na Rebecca, sujeito da narração, o leitor de Ana primeira pessoa: a catástrofe – essa tempestuosa Teresa Pereira, enquanto ouvinte ou destinatário inversão – de dessa voz que se exprime para além da lacuna na epígrafe do romance, a partir do poema do romance de du Maurier e para além da “America: a prophecy”, de William Blake: “Fiery morte, pode experienciar algum desconcerto the Angels rose, and as they rose deep thunder em relação ao que esta narrativa é, em termos rolled/ Around their shores” (Blake, 1994: 100). formais, e ao que ela representa na relação entre literatura e cinema que coordena esta Assistimos aqui, então, à transformação da reflexão. Pode então falar-se de contaminação figura de Rebecca, que passa de não-entidade e de intertexto; de prequela – pensando na presentificada apenas textualmente por via de relação com o romance de du Maurier –; de documentos escritos e da marcação das iniciais novelização ou remediação – pensando na R. de W. na miríade dos seus pertences, deixados relação com a longa-metragem de Hitchcock como traços materiais da desaparecida – no –; de anti-adaptação, para usar a designação romance de du Maurier, mas também, de de Jan Baetens para um corpus de narrativas forma especialmente ilustrativa, no filme de que regressam ao suporte literário depois da Hitchcock (Figs. 2 a 7) – a figura ascensional e sua adaptação cinematográfica (2008: 71); de luciferina, mas, sobretudo, a origem do texto e paródia – enfatizando-se a réplica não-irónica ao seu agente discursivo central, a que se somam as original, tal como Linda Hutcheon a equacionou qualidades de aparição e de (1985: 32); ou ainda dos conceitos genettianos sair olhei para o espelho que só reflecte uma de de palimpsesto e de literatura em segundo grau. Não obstante, O Verão Selvagem dos Teus Olhos nunca se ajustará perfeitamente a nenhuma Passagens como esta sugerem ainda que, ao destas designações. O texto efectivamente visitar a mansão e a mulher que, nela, a viria a fantasmal de Ana Teresa Pereira parece substituir, a Rebecca de Ana Teresa Pereira se vê escapar a definições estritas e denunciar num complexo mecanismo narrativo que a leva a total obsolescência deste jargão teórico- crítico quando recorremos a ele para designar momento póstumo, na sequela da sua história, qualquer coisa que se escreve e se inscreve em quer em primeira pessoa, quer vicariamente, os intervalos e brechas que desestabilizam leituras padrões definidores da sua própria personagem. solidificadas, abrindo caminhos novos em Isto é, Rebecca emerge no futuro para, a partir elementos tidos como fechados e definitivos, de desse ponto extramuros, relembrar o passado acordo com uma noção miraculosa de literatura e nele reenquadrar um futuro a que já não – e, particularmente, de narrativa – enquanto pertence, empossando-se dele. A coalescência realização de impossíveis. Refiro-me, neste caso destas dimensões à partida inconciliáveis particular, à impossibilidade concretizada da reflecte-se justamente na imagem especular aparição de Rebecca, esse anjo chamuscado, e que a narradora morta descreve. Numa primeira dizer-se a si mesma , anunciada monstro : “antes de nós e tive novamente a impressão de que ela me observava” (Pereira, 2008: 75). a reviver o futuro, na medida em que repete no BRISAS

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129 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS BRISAS instância, “o espelho que só reflecte uma de nós” denuncia o estado vampírico de Rebecca, a predação e a dependência que o seu fantasma executa e nutre pela segunda esposa de Max de Winter. A um nível mais essencial, o espelho não pode senão reflectir “uma de nós”, mostrando que, concretamente, estamos perante apenas uma mulher, nem Rebecca nem a jovem anónima, mas a quimera que, na confluência das duas, às duas oferece um reflexo unificado do qual, estando separadas, ambas seriam desprovidas.

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130 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS BRISAS Fig. 2 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock Fig. 3 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock

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131 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS BRISAS Fig. 4 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock Fig. 5 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock

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132 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS BRISAS Fig. 6 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock Fig. 7 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock

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133 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS No romance de du Maurier, a substituta da mulher morta descreve regularmente o seu próprio exercício de emulação daquela, relatando episódios em que exuma em si mesma e na sua movimentação por Manderley a memória e o corpo da Mrs. de Winter original, convocando sobre si, por via da obsessão que a motiva, a presença de Rebecca, e concretizando a ideia de Fernando Guerreiro de que: O fantasma regressa porque não se esqueceu [e não se esqueceu porque não foi esquecido, gostaria de acrescentar], tem saudades da sua vida enquanto corpo/carne. É por isso também que é como corpo que ele vem assolar a paixão do outro. Como sucede com o Vampiro, o que o move – seu vício, dependência, habituação – é essa vontade, forma de materialidade que se encarna, fusionalmente, no sangue que (es)corre – em cada profanação, dentada – nesse corpo único formado por ele e pela vítima. (2011: 26, ênfases no original) Num dos passos do romance a que me refiro, ainda antes do seu casamento com Max de Winter e perante a notícia de que tinha havido no passado outra mulher, entretanto desaparecida, já a jovem fantasia a existência dessa outra – corporizando-a e fundindo-se com ela, justamente –, parecendo compreender de imediato, se não mesmo impor a si mesma, a sua condição de suplente numa peça de teatro ( understudy ). Note-se a sugestão de uma preparação literalmente cosmética que inicia um dos seus delírios, e que termina, para regressar ao raciocínio que aqui me trouxe, num problema de escrita: And we were busy then with powder, scent and rouge , until the bell rang and her visitors came in. I handed them their drinks, dully, saying little (…). (…) It was not I that answered, I was not there at all . I was following a phantom in my mind, whose shadowy form had taken shape at last. Her features were blurred, her colouring indistinct, the setting of her eyes and the texture of her hair was still uncertain, still to be revealed. She had beauty that endured, and a smile that was not forgotten. Somewhere her voice still lingered, and the memory of her words. (…) In my bedroom, under my pillow, I had a book that she had taken in her hands, and I could see her turning to that first white page, smiling as she wrote, and shaking the bent nib. Max from Rebecca . (Maurier, 2003: 47, ênfases minhas) A prevalência literária da personagem de Rebecca é veiculada neste livro dado de presente, no qual, através da dedicatória e da assinatura, ela parece firmar a um tempo a posse do marido (que devia agora pertencer a outra) e a perpetuidade da sua própria existência, ambas figuradas no perfil caligráfico da mensagem (Fig. 8). A dedicatória e a assinatura de Rebecca devem aqui ser entendidas como símbolos daquela que ganha vida em literatura, por meio da auto-inscrição. Rebecca, a personagem irremediavelmente desprovida de fala no filme de Hitchcock e no romance de du Maurier, é aquela que, não obstante, exerce sobre as restantes, violentamente, o poder da palavra: “Max was her choice, the word was her possession; she had written it with so great a confidence on the fly-leaf of that book. That bold slanting hand, stabbing the white paper, the symbol of herself, so certain, so assured” (Maurier, 2003: 47). BRISAS

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134 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS BRISAS Em O Verão Selvagem dos Teus Olhos , porém, o substituta de Rebecca em Manderley – uma fantasma que narra é também o narrador que mulher descaracterizada, se não mesmo assombra, cumprindo-se enquanto figura plena indescritível, pela falta de marcadores que só na complementaridade dessas duas funções, permitam conferir-lhe alguma particularidade que, como aprendemos – e como Ana Teresa para além da sua simplicidade de alma e Pereira aprendeu – na abertura de Rebecca (filme sensaboria física – na actriz Joan Fontaine, assim e romance), parecem misturar-se intimamente como ao tornar evidente a invisibilidade, neste universo. Paradoxalmente, é neste entendimento actancial o filme sublinha pelas qualidades inerentes do do propriamente literário (isto é, o acto de cinema a especularidade e a espectacularidade narração) que entra o filme de Hitchcock desta ficção, que se pode resumir a um baile de enquanto objecto mediador entre o romance máscaras. A somar a esta a ideia, a própria figura de Ana Teresa Pereira e o romance de Daphne de Joan Fontaine traz à personagem da segunda du Maurier. Como inevitável vértice de um mulher que a actriz interpreta em triângulo, a primeira longa-metragem americana outro nível de sentido, já que não podemos do realizador inglês oferece a O Verão Selvagem dos Teus Olhos muito mais do que um cenário papéis de ingénua, e um guião, uma concretização em imagens e perfil caracterológico – quando não ontológico diálogos da história original. Ao corporizar a – particularmente difícil de circunscrever que Fig. 8 – Rebecca (1940), Alfred Hitchcock a não- presença , de Rebecca, que, no concreto visual de uma tela, podemos apenas, activamente, não-ver , Rebecca um deixar de a ver, retrospectivamente, à luz dos plain girl e mulher com um

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135 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS havia um papel para representar, o papel da minha vida, o papel de Rebecca. E a primeira vez que pensei nisso a ideia apaixonou-me totalmente, era tão bom como ser Hamlet, era melhor do que ser Hamlet, porque em mim não havia grandes indecisões, eu queria tirar da vida tudo o que ela pode oferecer. (Pereira, 2008: 25-26) De certa forma, pode especular-se que a Rebecca de Ana Teresa Pereira teve de ver o filme de Hitchcock para perceber melhor quem é. O que percebeu, sem demasiada surpresa, é que é uma personagem , que, enquanto tal, pode ser interpretada por si mesma, pela segunda Mrs. de Winter, por Mrs. Danvers, e até pelo cadáver da mulher desconhecida, que, até à descoberta do barco afundado, tinha passado pelo seu próprio corpo e sido, ainda que falsamente, reconhecido oficialmente como tal por Max de Winter. Ao assistir a Rebecca e à interpretação de Joan Fontaine, e, por conseguinte, ao inteirar-se da sua própria qualidade proteica, ela percebeu ainda que a sua condição de personagem é em certa medida anti-hamletiana, distanciando-se do dilema de to be or not to be , isto é, ser ou não ser, viver ou morrer, para modalizar-se, no maior dos paradoxos, em chave inexoravelmente positiva: ser sempre, viver sempre. Na ficção de Ana Teresa Pereira, Rebecca é um pesadelo que os outros têm, mas que – e é este o radical contributo de O Verão Selvagem dos Teus Olhos – também tem o privilégio de se sonhar a si mesmo. Ela é uma ideia: uma figura da permanência, um modelo que sobrevive a todos os seus avatares, e que fala melhor quando fala do lado de lá da morte, numa posição exterior ao tempo e indiferente ao espaço. Enquanto figura da resistência, Rebecca personifica e sacraliza, pois, o incómodo, o desconfortável e o inoportuno; ela é a ruga – expressa na BRISAS viriam a marcar a sua carreira nos anos 1940, nomeadamente em Suspicion (1941), Jane Eyre (1943) e Letter from an Unknown Woman (1948). Um baile de máscaras constitui, de resto, a sequência central de Rebecca (filme e romance), a tour de force depois da qual a narrativa se dobra sobre si mesma para se poder resolver na demonização dessa figura obscena e sem rosto que, nesta cena, em que a nova mulher de Max de Winter se disfarça de Caroline de Winter, tal como Rebecca havia feito em vida – disfarçando-se, assim, inadvertidamente, de Rebecca, e dando-lhe corpo –, se confirma enquanto Máscara. Rebecca representa, pois, a representação, o disfarce, a fantasia; é apenas vestindo-se de outra que a segunda mulher a pode imitar; e é pelo poder dessa associação diferencial com o faz-de-conta que ela assombra a sua substituta e dita também a tragicidade do papel que esta desempenha na narrativa, reduzido a um problema de performance: ser ou não ser Rebecca, imitar ou não imitar Rebecca, cumprir esse papel ou falhar a sua execução. Assim, numa espécie de reconversão ficcional desta ideia puramente teórica e apenas implícita na história original, a Rebecca de Ana Teresa Pereira, ao contrário da Rebecca de Daphne du Maurier, ganha um passado como actriz, mas, enfaticamente, como actriz que se representa a si mesma. Diz a própria, a este respeito: Mas, porque não compreendia as outras pessoas, e tinha de viver no meio delas, tornei-me uma actriz. Eu sempre gostei de teatro. O meu pai levava-me ao teatro, em Londres. Uma vez, passámos duas semanas em Stratford- upon-Avon, quando lá decorria um festival. E quase não perdíamos um filme: filmes russos, americanos, alemães, ingleses. Quando era miúda, sonhava vagamente ser actriz. Depois percebi que tinha mesmo de sê-lo, mas que só

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136 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS cicatrização das suas iniciais, da sua caligrafia narração que a presentifica recursivamente: sobre o papel branco, a capa das agendas e o tecido das fronhas – indispensável à criação e ao contacto, já que é essa mesma falha que semeia na mente dos que dela se lembram, e que se lembram ainda que nunca a tenham visto, o medo e a atracção indispensáveis à sua existência, tanto mais marcante quanto imaginária. A este respeito, deve notar-se que o facto de o nome de Rebecca dar o título ao romance e ao filme que aqui discuto pode bem indicar, ainda, que é dela que leitores e espectadores se deverão lembrar em primeiro lugar ao lembrarem- se destas obras, embora de quem eles se lembrarão efectivamente, quando a pessoa de que se fala é um perfeito vazio, figura máxima da obscenidade, seja difícil de aferir. Lembrar- se-ão, porventura, de um coração de trevas em forma de mulher. A performance de Rebecca implica, pois, a sua actualização permanente. Ou seja, a ausência de Rebecca, o fantasma, é o que a torna presente e a inscreve no momento presente , sempre pronta, como vimos na citação de O Verão Selvagem dos Teus Olhos que transcrevi acima, a performatizar- se uma e outra vez e, ao contrário de Hamlet, a constantemente não-morrer . Com efeito, é desta fuga ao tempo como passagem para a sua reconceptualização enquanto acto que vem, precisamente, o título, O Verão Selvagem dos Teus Olhos , a partir de um poema de William Butler Yeats sobre uma mulher cuja beleza, ao contrário do pressuposto comum, só aumenta e solidifica Ficaremos a saber, no desenrolar da acção, com o efeito iterativo – e não degenerativo – do que a suposição da segunda Mrs. de Winter tempo, tornando-a uma imagem que arde mais estava errada, e que fortemente depois do Verão selvagem , e talvez, um nome como Rebecca, depois da vida , de onde esta destinado a regressar do fundo da baía em que pode sempre regressar pelo milagre de uma havia naufragado. A dimensão irónica deste Time can but make her beauty over again: Because of that great nobleness of hers The fire that stirs about her, when she stirs, Burns but more clearly. O she had not these ways When all the wild summer was in her gaze. (Yeats, 1996: 78) Com efeito, Je Reviens Eu Regresso – –, fórmula substantivada de um verbo de acção no presente do indicativo com valor de futuro, é o nome do barco em que Rebecca pereceu, e que conjuga assim o seu desaparecimento e a sua reaparição, materializando também o derradeiro acto de fala da mulher condenada: uma promessa de retorno. Deste modo, ao intitular o primeiro capítulo de O Verão Selvagem dos Teus Olhos , narrado por Rebecca, justamente, “Je reviens”, Ana Teresa Pereira explora esta ideia e faz do seu texto a Barca de Caronte em que a voz de Rebecca regressa ao mundo dos vivos flectida na primeira pessoa. Na verdade, o signo do retorno, a partir do nome da embarcação em que a anti- heroína encontrou a sua morte, fora já abordado ironicamente, no romance de du Maurier, nas elucubrações que a narradora sem nome faz a este propósito: “Je Reviens”. What a funny name. Not like a boat. Perhaps it had been a French boat though, a fishing boat. Fishing boats sometimes had names like that; “Happy Return”, “I’m Here”, those sort of names. “Je Reviens” – “I come back” . Yes, I suppose it was quite a good name for a boat. Only it had not been right for that particular boat which would never come back again . (Maurier, 2003: 171, ênfases minhas). Je Reviens era, afinal, absolutamente certo para um barco BRISAS

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137 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS comentário, contudo, para regressar a um ponto infalível, o poder que a torna, mesmo no plano inicial deste estudo e, desse modo, caminhar ficcional, uma figura mítica. também para a sua conclusão, adensa-se na resolução da história. Poderíamos supor que, ao destruir Manderley ao filme de Alfred Hitchcock, mostra quão por completo e ao sacrificar-se no fogo que tremendamente certa estava Mrs. Danvers na ela mesma deflagrou, ou seja, ao finalizar o seu sua leitura do pequeno melodrama secundário, Mrs. Danvers Note-se a este respeito que, tal como na cena do – a governanta nitidamente apaixonada por baile de máscaras, na qual, quanto mais se tenta Rebecca – dá igualmente por terminada a emancipar e afirmar-se enquanto ela mesma – assombração da mulher original. Na reacção depois de declarar à secretária de Rebecca, paroxística àquilo que aos seus olhos é a invasão perante Mr. Frith, o mordomo, num acesso de de Manderley pela segunda mulher e, talvez, violência e assertividade, “I am Mrs. de Winter sobretudo, à tomada de consciência de que now!” –, mais a segunda Mrs. de Winter caminha Rebecca também a havia traído ao não partilhar sobre os passos de Rebecca, também na estrutura uma intimidade tão grande quanto ela supunha, do seu relato ficcionalmente autobiográfico a Mrs. Danvers – a intermediária de Rebecca no segunda mulher de Max de Winter coincide mundo dos vivos, como se verifica no segmento com a sua antecessora, fazendo-a reviver. Esta do baile de máscaras, em que ela convence a ideia consolida-se no facto de, ao dizer “Last jovem esposa a envergar o disfarce de Caroline night I dreamt I went to Manderley again”, a de Winter/Rebecca – corta um laço importante jovem esposa estar não apenas a anunciar a com o fantasma. Com a revelação tardia de Max natureza iterativa de uma história que, no fim, de Winter de que o seu primeiro casamento equivocadamente, vamos julgar concluída, como fora na verdade absolutamente infeliz, e com está também a cumprir a promessa de Rebecca: o suicídio de Mrs. Danvers e a destruição de Manderley pelo fogo, não sobra na história existe, e ao convocar, nesse regresso, o fantasma ninguém que ame Rebecca. No entanto, a própria Mrs. Danvers já havia inocente, que se veste de preto, perigosamente declarado, numa cena prévia à visita ao médico diferente de si mesma no início da história e mais em Londres – visita esta que, no romance, parecida com aquela que a precedeu – mostra higieniza menos o perfil imoral de Max de como Rebecca perdurará enquanto o pesadelo Winter do que no filme de Hitchcock, em que que ela representa perdurar nos espíritos dos ele é realmente ilibado de qualquer acção que a ela sobrevivem, como uma estranha forma homicida –, que Rebecca não precisava do de amor que se espalha por contágio e que amor de ninguém para conduzir a sua vida não a deixa acabar de morrer, como uma figura profundamente excêntrica, profundamente livre, de radical e diabólica alteridade com a qual, e para exercer sobre os outros a sua atracção inadvertidamente, qualquer um se pode unir. A estrutura analéptica do romance de Daphne du Maurier, traduzida no flashback que dá início papel de Rebecca nesta história. je reviens . Ao voltar a uma Manderley que já não da mulher que a antecedeu, a protagonista – ao tempo da narração, uma mulher magoada, já não BRISAS

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138 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Que Rebecca, adornada com a sua “pulseira com o símbolo do infinito” (p. 126), nunca acabou, nem pode acabar, de morrer, parece ser também a ideia subjacente a O Verão Selvagem dos Teus Olhos , livro de memórias e diário íntimo de um fantasma, mas, sobretudo, de uma mulher desconhecida com saudades de si mesma. BIBLIOGRAFIA BAETENS, J. (2008). La Novellisation: du film au roman – Lectures et analyses d’un genre hybride. Bruxelas: Les Impressions Nouvelles. BLAKE, W. (1994). Selected Poetry, ed. Michael Mason. Oxford: Oxford University Press GUERREIRO, F. (2011). Teoria do Fantasma. Lisboa: Mariposa Azual. HUTCHEON, L. (1985). A Theory of Parody. Nova Iorque e Londres: Methuen. MAURIER, D. du (2003). Rebecca. Londres: Virago. PEREIRA, A. T. (2008). O Verão Selvagem dos Teus Olhos . Lisboa: Relógio D’Água. ----- (2002). “Mar de sargaços”, O Ponto de Vista dos Demónios . Lisboa: Relógio D’Água, pp. 23-25. YEATS, W. B. (1996). “The Folly of Being Comforted”, The Collected Poems of William Butler Yeats , ed. Richard J. Finneran. Nova Iorque: Scribner. BRISAS

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141 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS melhor, e não há dúvida de que este exercício, como todas as ciências comparativas, tem um grande potencial heurístico. O problema, o que torna esta actividade comparativa um vício complexo e não uma simples virtude, é que ela nunca se mantém no limite de um saber, de um exercício puramente epistémico: suja-a e molda-a o desejo, esvaziando o sujeito no objecto que de observado se torna desejado. Ao aproximarmo-nos dos outros como espectadores (no cinema, na literatura, na contemplação de vidas em que não somos envolvidos), investimos neles o suplemento de desejo para o qual não há saída na nossa vida. Assim chegamos ao ponto de dizer: “Sinto saudades de alguém/ lido ou sonhado por mim/ em sítios onde não estive.” Na vida dos outros, só por serem outros, 3 não apenas sabemos melhor quem somos, mas somos melhor quem somos (o que desejamos ser e não chegamos a ser). I. O DESENCONTRO NECESSÁRIO COM O NOSSO PASSADO – ENTRE UM FILME E UM POEMA Estamos hoje aqui em volta de um filme e de um poema associados pelo mesmo título e pelo 2 mesmo tópico – a inextricável mistura do amor, da memória, da culpa e da saudade. Não sei se isto chega para fazer desta dupla um par (sendo esta a grande pergunta de todas as histórias de amor), mas de certeza chega para reflectir sobre algumas perguntas que estas duas obras partilham entre elas e connosco, alimentando aquele nosso vão e admirável vício de tentar saber quem somos olhando para os outros. Vamos ao cinema, lemos literatura e historiografia, tornamo-nos espectadores das vidas dos outros, porque achamos que assim nos encontramos a nós mesmos, nos percebemos BRISAS Muriel, ou da Poesia - O reencontro como desencontro necessário -Ruy Belo e o Cinema TERESA BARTOLOMEI 1 1 Investigadora. Professora universitária. 2 MURIEL, ou LE TEMPS D’UN RETOUR (Muriel ou o tempo de um regresso), de Alain Resnais (1963, 116 min) e “Muriel”, de Ruy Belo ( Toda a terra , 1976). 3 “Ah poder ser tu, sendo eu!”, Aquele grande Rio Eufrates , RB: 105. Com este poema Belo desenvolve uma variação subtil e irresistivelmente irónica de um dos grandes poemas de Pessoa, “Ela Canta, Pobre Ceifeira”, monumento insuperável ao mecanismo de desdobramento voyeurista do próprio eu no fantasma do outro: “Ei-lo que avança/ de costas resguardadas pela minha esperança/ Não sei quem é. Leva consigo/ além de sob o braço o jornal/ a sedução de ser seja quem for/ aquele que não sou/ / E vai não sei onde/ visitar não sei quem/../ Há uma parte de mim que me abandona e me edifica nesse vulto que/ cheio de ser visto por mim/ é o maior acontecimento da tarde de domingo.”

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142 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Como tão bem diz o poeta que nos convocou governar a falta que nos atravessa e nos desseca: hoje à porta da sua palavra: Talvez pensasse que naqueles encontros em que talvez no fundo procurássemos o encontro profundo com nós mesmos haveria entre nós um verdadeiro encontro como o que apenas temos nos encontros que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes Isso era por exemplo o que me acontecia quando há anos nas manhãs de roma entre os pinheiros ainda indecisos do meu perdido parque de villa borghese eu via essa mulher e esse homem que naqueles encontros pontuais Decerto não seriam tão felizes como neles eu pois a felicidade para nós possível é sempre a que sonhamos que há nos outros Até que certo dia não sei bem Ou não passei por lá ou eles não foram nunca mais foram nunca mais passei por lá (“Muriel”, RB: 751) Nesta nossa necessidade de ler poesia, ver antepassados. cinema, ser espectadores das vidas de outrem não há apenas sede de saber. Há a sede do desejo, Se o a profunda melancolia da impossibilidade de o satisfazer e os mecanismos oníricos e outros, só o temos ao desencontrarmo-nos de simbólicos de compensação desta frustração. nós, nos A exteriorização representativa em figuras que veiculam ao mesmo tempo identificação e amamos plenamente: nenhures amamos tão separação é uma forma de nos reconciliar com perfeitamente como perante um ecrã de cinema), o facto da nossa insatisfação, ajudando-nos a para nos encontrarmos temos que nos apropriar projectamos a felicidade que não temos como um fantasma no ecrã da nossa contemplação do mundo, como algo que existe, que vemos, fora de nós, objecto de visão por definição separado 4 do sujeito. 5 Assim, a lei do desejo transforma a sede de saber (de nos percebermos) em sede de não sermos nós, condena-nos à duplicação, levando- nos a sermos felizes apenas na representação da felicidade que encontramos além do nosso eu – no cinema, na literatura, na música, nas vidas contempladas fora de nós, eventualmente ao sermos a nossa própria vida como já não sendo nossa, duplicando-nos mesmos como outros, 6 como os que já não somos, como aqueles outros que somos para nós mesmos sendo os nossos encontro profundo com nós mesmos que procuramos no verdadeiro encontro com os encontros que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes (onde só afinal BRISAS 4 Sendo que: no inverno é que o verão existe verdadeiramente , “Da poesia que posso”, RB: 339. 5 Apenas de passagem, seja lembrado um poema muito próximo a esta projecção beliana da felicidade como um fantasma exterior, para nós inalcançável, mas concedido aos outros: “High Windows” (1967/1974) de Philip Larkin ( Collected Poems . Farrar Strauss and Giroux, New York 2001):“When I see a couple of kids/ And guess he’s fucking her and she’s / Taking pills or wearing a diaphragm,/ I know this is paradise// Everyone old has dreamed of all their lives— /Bonds and gestures pushed to one side/ Like an outdated combine harvester,/ And everyone young going down the long slide// To happiness, endlessly. I wonder if / Anyone looked at me, forty years back,/ And thought, That’ll be the life;/ No God any more, or sweating in the dark// About hell and that, or having to hide / What you think of the priest. He/ And his lot will all go down the long slide / Like free bloody birds. And immediately// Rather than words comes the thought of high windows: / The sun-comprehending glass,/ And beyond it, the deep blue air, that shows/ Nothing, and is nowhere, and is endless.” Quão central seja este tópico para Ruy Belo é confirmado pela reapropriação meta-textual do célebre poema de Álvaro de Campos, “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” (1928), na lírica “A autêntica estação” (cf. “Rosa Maria Martelo, “Alegoria, Fragmento e Montagem nos poemas longos de Ruy Belo”, em Manaíra Aires Athayde (Org.), Literatura explicativa . Assírio & Alvim, Lisboa 2015: 111-126. Cf. também Gastão Cruz, “Ruy Belo e «a importância misteriosa de existir»”, Revista de Filologia Românica , 2008, vol. 25: 47-53). No poema de Álvaro de Campos, porém, o mecanismo de desdobramento é duplicado num jogo de espelhos de reciprocidade: o olhar do poeta cruza-se com e espelha-se no olhar do outro observado e imaginado, num rasto de sonhos dispersos que é tudo o que deixa a passagem – do tempo, do carro: “À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto./ A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha./ Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz./ Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima/ Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real./ Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha /No pavimento térreo,/ Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,/ E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi./ Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?” (Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos . Ática, Lisboa 1944/1978). “O meu reino pela rapariga de Cambridge/ Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia/ sentindo agora o que à distância sinto/ pode dizer-se que seria feliz/ Só assim o seria finalmente/ há uma força obscura que mo diz.” “A rapariga de Cambridge”, RB: 293 6 “O meu reino pela rapariga de Cambridge/ Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia/ sentindo agora o que à distância sinto/ pode dizer-se que seria feliz/ Só assim o seria finalmente/ há uma força obscura que mo diz.” “A rapariga de Cambridge”, RB: 293

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143 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS da nossa vida como um reencontro connosco, levando-nos a duvidar de nós mesmos. Quão como estratégia para sarar uma separação e uma traiçoeira seja a lembrança sabe bem quem a perda que nos são indispensáveis para sermos cultiva. Porque quanto mais lembramos, quanto aquilo que desejamos. O círculo é, evidentemente, vicioso, não sanável, sensação de alheamento: chegamos a duvidar instituindo o passado como o nós inalcançável que aquilo que lembramos seja algo de real, em que unicamente, impossivelmente, nos resultando tão longínquo, tão diferente do nosso é dado reencontrarmo-nos. Saudade é ter o presente, que não temos mais a certeza de aquilo nosso passado como um objecto de desejo, a se ter efectivamente dado: descoberta de não termos aquilo que somos (se aquilo que fomos é parte de nós, é parte daquilo que somos), é saber que só podemos ser e saber quem somos ao não ter o que somos: é por sermos despidos de nós que finalmente descobrimos o nós que a presença esconde, a ausência desvela. Nesta espiral de vida incessantemente rebobinada no desejo de um eu deslocado, não há encontro connosco se não no desencontro necessário do reencontro com aquilo que fomos sem sabê-lo, e por isso sem realmente vivê-lo, vivendo-o verdadeiramente só retrospectivamente como espectadores de nós mesmos, na melancolia dos sobreviventes da própria vida. O eu da saudade é o eu de quem é feliz apenas na lembrança daquilo que foi, numa altura em que não sabia que era feliz, que era inocente. O eu da saudade é um eu profundamente dividido, que acaba por desconfiar de si mesmo, que corre incessantemente o risco de ruir na Invocamos a memória como um lugar de clivagem interior, no desencontro consigo que encontro connosco, com a nossa identidade cultiva, para satisfazer no procurado reencontro individual e colectiva. O dever da memória o desejo do encontro, o desejo de autenticidade. Nasce assim, inevitavelmente, a suspeita que autoajuda pessoal e colectiva: as sociedades este sermos felizes no passado que já não somos, e os indivíduos devem lembrar, não recalcar nos outros que não conhecemos, nos outros que a memória, porque só não esquecendo o nos são dados na representação artística, seja nosso passado preparamos o nosso futuro – apenas uma ilusão, que no fim se vira contra nós, diz-se algo pomposamente nas “mensagens” mais a lembrança se afasta de nós, se autonomiza como algo que não nos pertence, criando uma Passamos como tudo sem remédio passa e um dia decerto mesmo duvidamos dia não tão distante como nós pensamos se estivemos ali se madrid existiu (“Muriel”, RB: 751) Que o passado (aquele inchaço doloroso de amor, culpa e fracasso que assombra os protagonistas do filme de Resnais) seja algo de real é a pergunta que a memória incessantemente levanta, de forma que a lembrança se converte incessantemente de evidência em confutação (daquilo que somos, daquilo que fomos): Mas sabia e sei que um dia não virás que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste ou até se exististe ou se eu mesmo existi pois na dúvida tenho a única certeza Terá mesmo existido o sítio onde estivemos? Aquela hora certa aquele lugar? À força de o pensar penso que não (“Muriel”, RB: 750) tornou-se efectivamente entretanto um mantra político e psicológico, uma fórmula mágica de BRISAS

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144 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS promocionais de saúde pública e privada. os dois personagens mais profundamente do Mas cuidado (avisam-nos o poeta e o cineasta, que o amor, e que alimenta as suas verdadeiras naquela desconstrução do objecto memória que paixões: o jogo para ela, a vida dupla para ele)? acomuna o filme e o poema)! A memória é um E que dizer do autoengano de Bernard, que ardil: o seu efeito é frequentemente o oposto quer lembrar como uma história de amor o daquilo que nos propomos. Tira então segurança relacionamento com Muriel, a mulher que ele onde devia dá-la. Tira então estabilidade onde torturou? Será então a lembrança deslocada no devia colocar-nos num sítio de manutenção presente do amor uma cobertura do sentido de da identidade, numa dinâmica cumulativa de culpa associado ao passado? Serão lembrança corroboração e protração. A vida é uma incessante despedida de presente? Serão duas formas alternativas e nós mesmos, por isso até nós mesmos nos conflituais de lidar com o que se deu, na sua dissolvemos numa neblina de dúvidas e incompatibilidade com o hoje? Onde estará interrogações (“Mas sabia e sei que um dia não então a verdade? virás/ que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste/ ou até se exististe ou se eu mesmo Por isso, em vez que nos dar continuidade e existi/ pois na dúvida tenho a única certeza”). estabilidade, a lembrança pode tornar-se factor 7 Se pensávamos que a memória fosse lugar de de destabilização, realçando a descontinuidade encontro connosco, descobrimos então que ela do presente em relação ao passado, porque pode ser, pelo contrário, factor de dissolução fomos aquilo que hoje não somos, numa dos lugares, condição de desencontro radical – complementaridade que pode exacerbar- “Terá mesmo existido o sítio onde estivemos? se em incompatibilidade subjectiva (na Aquela hora certa aquele lugar?”. Terá mesmo existido como história de amor, e hoje somos jovens, fomos jovens e hoje aquela ligação entre Hélène e Alphonse, feita de somos velhos, fomos apaixonados e hoje equívocos e mútuos enganos, que o velho casal estamos sozinhos, estivemos na Argélia, em desacoplado reata como fantasma projectado Madrid, e hoje estamos em Bourgogne, em através de uma cadeia de outras relações de amor, Lisboa..., fomos culpados e hoje queremo- com outras mulheres, outros homens (relações nos a todo o custo inocentes (como Bernard, todas queimadas na compulsividade que une o rapaz assombrado pela guerra, que mata e sentido de culpa duas formas diferentes de o passado se manifestar no presente, como comparação, ou é insustentável o passado, ou o é insustentável o presente): fomos crianças BRISAS 7 A proximidade de Belo a Resnais, nesta dolorosa denúncia da memória como vetor de dissolução do eu e da realidade mais do que como cemento identitário, consta , literalmente, na menção de uma outra obra prima absoluta do realizador francês - O ano passado em Marienbad (1961) –, no poema “Nada consta”: “Ainda este ano talvez em marienbad/ eu vi mulheres curtidas pelos lutos” (RB: 325). O filme de Resnais, mais uma variação magistral sobre o engano da lembrança, é evocado aqui como aviso meta-textual contra toda a ilusão de definitividade biográfica, que esvazia a relevância confessional da construção do auto-retrato do poeta para o entregar por completo àquela forma objectiva e até mesmo impessoal que é habitual e devida na poesia autêntica, na sua capacidade de dizer a memória não como legado imutável e irreversível do passado, mas como parte de um presente que sempre muda e nunca fica, em que nada consta . Porque afinal, no universo do homem, à diferença do universo físico, que se mantem na sólida lei da autoconservação (sendo que a energia não pode ser criada nem destruída: a energia pode apenas transformar-se), a única grande certeza é a da perda – “Continuo a dizer: se alguma coisa há/ que podias perder e ainda não perdeste/ de que já a perdeste podes estar certo.” 8 “Mais tarde olhei-te e nem te conhecia/ Agora aqui relembro e pergunto:/ Qual é a realidade de tudo isto? / Afinal onde e que as coisas continuam/e como continuam se é que continuam?” “Através da chuva e da névoa”, RB: 340.

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145 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS para matar o passado: pretende restabelecer em contentor e nessa reversibilidade dá-se uma retroactivamente a própria inocência passada alteração permanente, porque aquilo que somos com a culpa do presente). E ainda mais profundamente, a lembrança pode altera o nosso fomos, como nos é entregue tirar-nos continuidade e estabilidade porque pela lembrança, pela culpa, pelo desejo – pela descobrimos hoje que não só mudámos nós saudade. em relação ao passado, mas muda o passado enquanto o tempo passa: o nosso passado de Perante este paradoxo e a carga disruptiva ontem já não é o passado de hoje, porque a cada que ele representa para o papel da memória dia o que fomos se altera aos nossos olhos, ao na construção de identidades estáveis, na longo da alteração da nossa visão de nós. É esta construção do nosso presente, a resposta a intuição que o poeta enuncia com extrema de muitos (psicólogos, políticos, filósofos, lucidez: Tu és a mesma mas nem imaginas como mudou aquele que te esperava Tu sabes como era se soubesses como é Numa vida tão curta mudei tanto que é com certo espanto que no espelho da manhã distraído diviso a cara que me resta depois de tudo quanto o tempo me levou (“Muriel”, RB: 749) Nunca temos certeza do passado, porque não continuidade e de saber fiável, conseguimos temos certeza do presente: “Tu sabes como era fazer da memória uma evidência e não um factor se soubesses como é”. Só se soubesse o que sou de corrosão: lembrança, culpa e saudade devem ao ser jovem, saberia o que fui ao ser criança. compatibilizar-se numa narrativa racionalmente Só se soubesse o que sou ao ser sozinho saberia consistente e simbolicamente adequada em o que fui ao estar apaixonado. E ao ser velho que passado e presente se compatibilizam saberei o que foi ser criança de forma diferente como complementaridade estável, em vez de daquilo que soube sê-lo ao ser jovem. Mais precisamente: o conteúdo da nossa Por grande que seja o valor desta intuição lembrança altera-se à medida da alteração narrativista, por evidente que seja a sua daquilo que sabemos, ou que acreditamos saber. pertinência psicológica e cívica, ética e O paradoxo é que a lembrança é um conteúdo religiosa, porque efectivamente sem histórias do nosso saber (antes de mais de nós mesmos). não há humanidade, ela torna-se, todavia, ilusão Saber, como diziam os gregos, é memória. Mas ideológica se pretende ser co-extensiva ao espaço ao mesmo tempo a nossa lembrança, a nossa da memória, abrangente da totalidade das suas memória, tem como conteúdo o nosso (alegado) dinâmicas. As histórias de certeza ajudam, são saber. O conteúdo converte-se incessantemente um dispositivo para contrariar a carga corrosiva hoje, que sabemos hoje, que queremos hoje, assim como o nosso saber hoje quem somos, homens de religião) é a narração: apenas quando convertemos as nossas lembranças em histórias, apenas quando moldamos a memória em dispositivo hermenêutico de fazer sentido numa intriga que institui os factos como acontecimentos, em redes de razões (explicativas, motivacionais, simbólicas), conseguimos fazer da memória um eixo de colidirem como alternativa instável. BRISAS

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146 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS da lembrança, mas a ambiguidade fundamental hoje parece tão forte, tão poderoso que ‘acaba’ da memória não pode ser eliminada, apenas com a lembrança, a varre embora como lixo contrariada. Nenhuma história leva a cabo a (por isso ecoa em nós com justeza inesquecível tarefa de funcionalizar inteiramente a relação o magnífico hino ao esquecimento que cantava entre passado e presente como harmónica Edith Piaf: “Non, rien de rien, non, je ne regrette convergência e pacífica interdependência. A rien” ), enquanto em outros momentos o passado melhor, a mais poderosa das histórias não põe parece prevalecer na definição daquilo que a palavra fim à possibilidade de contar de outra somos, parece expropriar-nos radicalmente do forma aquele fantasma que é o mesmo : o que nosso presente. Isto acontece principalmente aconteceu. Todo o reencontro entre passado quando é um passado de culpa, como no caso de e presente (toda a tentativa de manter uma Bernard: a culpa tira-nos o futuro; ou quando é continuidade de memória) é necessariamente passado de perda como no caso da Hélène, ferida um desencontro, é desencontro necessário: pela dupla perda do primeiro amor e a seguir do entre passado e presente haverá sempre, marido – perdas reiteradas obsessivamente no irredutivelmente, uma luta de que somos teatro jogo, na desesperada pulsão a matar o passado, permanente, alimentada incessantemente precisamente pelo passar do tempo, pela finalmente ganhar. mudança imparável que ele acarreta. A narração, dizem-nos igualmente Resnais e Belo, sobre o presente (por ele ser condição de dizem igualmente o cinema e a poesia (como trauma, na intensidade da responsabilidade ou linguagens que podem utilizar a narração, mas do sofrimento, do pecado ou da falta), que a não são constitutivamente narrativas –voltaremos lembrança não se deixa articular em narração: a este ponto na segunda seção desta reflexão), a memória bloqueia toda a narrativa, mina-a não é um antídoto definitivo a este problema. no acto mesmo de se produzir. É algo que se Afinal, até a nossa narração de nós mesmos se deixa reconhecer ao olharmos com sinceridade altera ao longo do passar do tempo: na guerra para as nossas vidas, para a resistência que entre passado e presente (Qual dos dois terá a ocasionalmente podemos ter em relação à última palavra sobre a nossa identidade? Quem confissão, como expressão narrativa do mal realmente decidirá quem somos? O nosso que fizemos ou dum sofrimento extremo que passado ou o nosso presente?) não há vencidos tivemos. O filme de Resnais foca precisamente nem vencedores, mas também nenhuma paz que esta dimensão de uma bela história possa definitivamente instituir. lembrança como culpa ou como perda extrema Temos que conviver com esta incessante tensão, (quem quer contar o amante que o abandonou, com esta contradição, com o facto de que em a recusa de amor que sofreu?) que assombra o certos momentos da nossa vida, por exemplo, o nosso presente, o assujeita à força emocional mudando a sorte que o determinou e, uma vez, Há situações tão extremas de poder do passado inefabilidade narrativa da BRISAS 9 “Non, rien de rien, non, je ne regrette rien/ Ni le bien qu’on m’a fait, ni le mal/ Tout ça m’est bien égal/ Non, rien de rien, non, je ne regrette rien/ C’est payé, balayé, oublié, je me fous du passé /…/ Je reparts à zéro /…/ Car ma vie, car mes joies/ Aujourd’hui ça commence avec toi.”

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147 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS do não dito e indizível, do não confessado e Se a separação temporal se sobrepôs a uma inconfessável, daquilo que a palavra não domina, separação espacial, a disponibilidade da mas domina a palavra e por isso domina o dono recuperação espacial – o facto que posso voltar da palavra, o sujeito. O sujeito que não consegue ao sítio de que me separei – pode parecer uma dizer o passado é as- sujeitado a ele e está despido vantagem, um dispositivo que facilita a reunião do próprio presente, que se torna irreal perante com o passado, sugerindo a possibilidade do o poder do que foi, porque a factualidade não milagre de a lembrança se tornar repetição. chega para garantir a realidade, que, do ponto Não é este porém o caso – como o poema realça de vista da experiência, se dá só como inerência na sua desolada, chuvosa beleza, como o filme subjectiva de um conjunto de referências de Resnais expõe na delicada melancolia do perceptivas, conceptuais e sociais que se fracasso de Hélène, cujo voltar ao primeiro encaixam coerentemente. Do ponto de vista da amor no corpo reencontrado do amante não dá experiência, o irreal é um estado de incoerência em nada, como esperado desde o começo pelo hermenêutica entre estes quatro aspectos – o espectador. Afinal, a melhor maneira de lidar subjectivo, o perceptivo, o conceptual e o social. Experimentar o mundo e experimentarmo- nos a nós mesmos como ‘irreais’ é um estado insustentável, e o sujeito não poupa estratégias, geralmente ineficazes, para sair desta angustiante condição de perda do próprio presente assinalada por situações de inefabilidade narrativa da memória, ferida pela perda ou pela culpa. Um dos expedientes mais comuns, ainda que não dos mais proveitosos, é – como expõe o filme de Resnais – tentar ‘sair’ literalmente do presente insatisfatório, danificado, e voltar ao passado, predispondo um mecanismo de repetição. Leia-se, a este propósito (num paralelo ulterior entre o realizador e o poeta), aquele outro grande poema de Ruy Belo que é “Madrid revisited”, que descreve o ‘voltar’ como metáfora da abordagem espacial à lembrança, na tentativa de fazer dela um reencontro com o próprio passado, à luz da grande, desesperada pergunta/esperança: a distância temporal poderá ser compensada, anulada, pela re-conjunção física com o lugar? com o passado falhado é liquidá-lo, mas Hélène não é boa no seu negócio de vender móveis antigos: Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga o meu propósito dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim habitual a externa ordenação desta cidade onde regresso Chove sobre estas ruas desolada e espessa como esmiuçada chuva a tua ausência líquida molhada e por gotículas multiplicada 0 céu entristeceu há uma solidão e uma cor cinzentas nesta cidade há meses capital do sol núcleo da claridade É outra esta cidade esta cidade é hoje a tua ausência uma imensa ausência onde as casas divergiram em diversas ruas agora tão diversas que uma tal diversidade faz desta minha cidade outra cidade A tua ausência são de preferência alguns lugares determinados como correos ou café gijón certos domingos como este para os demais normais só para nós secretamente rituais se neutros para os outros neutros mesmo para mim antes de em ti herdar particular significado A tua ausência pesa nestes loca sacra um por um os quais mais importantes que lugares em si são simples sítios que em função de ti somente conheci e agora se erguem pedra a pedra como monumento da ausência /.../ BRISAS

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148 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Aqui foi a cidade onde eu te conheci e logo ao conhecer-te mais que nunca te perdi Deve haver quase um ano mais que ao ver-te vi que ao ver-te te não vi e te perdi ao ter-te Mas a esta cidade muitos dão o nome de Madrid (“Madrid revisited”, RB: 459-460) Quando emperra o mecanismo hermenêutico de pela duplicação do sujeito em conteúdo da conciliação da lembrança com o nosso presente própria representação. Além de toda a eventual como história da nossa vida (porque o trauma (indemonstrável) razão ontológica (o agora do sofrimento, da perda, da culpa paralisam do depois nunca será o agora de então), é esta a memória na inefabilidade narrativa de uma a essencial razão hermenêutica pela qual o ferida não sarada e não exprimível), o cansado depois é sempre diferente do antes, e a iteração de lembrar deixa-se facilmente capturar pela espacial (permitida pela permanência do lugar) ilusão de uma tentativa tão sedutora quão não ajuda, pelo contrário, realça a irrealidade impossível, esforçando-se por converter a do presente-repetição na comparação com o lembrança em repetição graças ao suporte da passado. Se na lembrança é o passado que se permanência espacial: voltar ao lugar do crime torna irreal, na repetição é o presente que se 10 (notoriamente esta é uma pulsão interior dos torna irreal perante o poder (de catalisador culpados e dos criminosos seriais: a culpa não de sentido e de desejo) de que é revestido o assumida produz uma dificilmente resistível passado. coação à repetição); voltar ao lugar da felicidade; voltar ao corpo do amor perdido. O reencontro, porém, é sempre, inevitavelmente, e um desencontro. Voltar revela-se um fracasso. mas não inexactidão. Ruy Belo reivindica-o A conversão da lembrança em repetição falha, explicitamente: “nessa forma objectiva e até porque (como diz Kierkegaard naquela grande mesmo impessoal em mim habitual”) nos obra que tem como título precisamente A poemas “Muriel” e “Madrid revisited”, que repetição ) a repetição é impossível se for visam expor estas duas condições, de lembrança 11 projecto, operação voluntarista de reconstituição e de tentativa de repetição. do passado no presente a partir de uma descontinuidade recusada, se não resultar antes Na lembrança é o passado (de que Madrid é de uma continuação renovada em que o passado se mantem como atualidade, como parte do presente. O espectador de si mesmo nunca 12 pode identificar-se consigo como actor, porque o passado se torna objecto do desejo (ou do trauma) por ser irrecuperável (irreparável), Vimos como esta diferença, esta variação, é identificada com extraordinária precisão objectividade (a poesia é indeterminação, BRISAS 10 “Volto como quem volta ao local do seu crime/ e nem a morte me afastará disto”, “Portugal sacro-profano - A charneca e a praia”, RB: 187. 11 “A única coisa que se repetiu foi a impossibilidade de uma repetição. /.../ Depois de isto se ter repetido durante alguns dias, fiquei tão irritado, tão aborrecido com a repetição, que decidi voltar para casa. A minha descoberta não era significativa, e contudo era curiosa; pois havia descoberto que simplesmente não existe repetição e tinha-me convencido disso à custa de o ver repetido de todas as maneiras possíveis.”, Søren Kierkegaard, A Repetição (1843). Tradução, Introdução e Notas de J. Miranda Justo. Relógio d’Água. Lisboa 1997, pp.75-76. Para uma ulterior evocação da proximidade desta obra de Kierkegaard com a escrita de Ruy Belo, numa intuição singularmente convergente com esta leitura, cf. João Bray, Ruy Belo: Alegria em Preparação , (http://www.letras.ulisboa.pt/images/areas-unidades/literaturas-artes-culturas/programa-teoria-literatura/documentos/bray1.pdf) 12 Por isso a repetição é impossível, mas ao mesmo tempo “se não houvesse a repetição, o que seria a vida? Quem poderia desejar ser uma ardósia na qual o tempo inscrevesse a cada instante um novo texto, ou ser um memorial de coisas passadas? Quem poderia desejar deixar-se mover por tudo o que é efémero, pelo novo, que constantemente entretém a alma, amolecendo-a? /.../ [P]or isso continua a haver mundo, e continua a haver pelo facto de ser repetição. A repetição é a realidade, e é a seriedade da existência” (Ib.: 4) A repetição em que o mundo procede, para Kierkegaard, é o oposto da tentativa de fazer da vida um memorial do passado , de fazer do presente uma incessante reiteração do passado: é salvar no presente o que do passado continua actual.

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149 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS uma sinédoque) que se arrisca a tornar-se irreal: que não são nem lembranças (conteúdo do “e um dia decerto mesmo duvidamos/ dia não passado inalcançável) nem repetições (imitações tão distante como nós pensamos/ se estivemos presentes do passado), mas partes constitutivas ali se madrid existiu”. (“Muriel”, RB: 751) Na daquilo que fomos e somos, porque vindo do repetição, pelo contrário, o sentimento de passado se tornaram condições de sentido do irrealidade produz-se em relação ao presente presente, (de que Madrid é uma sinédoque): “É outra esta muitas coisas com a tua imagem”, diz Belo, mas cidade esta cidade é hoje a tua ausência/ Mas como imagem “Tu és a mesma”: continuas a a esta cidade muitos dão o nome de Madrid”. representar para mim o que representaste na (“Madrid revisited”, RB: 460) Na repetição, o altura, sem que o passar do tempo altere este presente arrisca-se a implodir em imitação papel existencial e simbólico que o passado te baça do passado (é esta a decepção de Hélène deu, que o presente continua a renovar. na sua tentativa infeliz de repetição amorosa) e as imitações, sabemo-lo bem, são ficções, É o que podem fazer a poesia (da literatura, falsificações. Que fazer, então, da memória em que o passado evitando reduzi-las a objecto (de saber, de não pode ser nem narrado nem repetido, mas desejo) contemplado e exterior, evitando a tem uma tal carga de significado que o presente deslocação duplicativa do eu na memória, do se torna pura e simplesmente ausência? A tua ausência são de preferência alguns lugares determinados como correos ou café gijón certos domingos como este para os demais normais só para nós secretamente rituais se neutros para os outros neutros mesmo para mim antes de em ti herdar particular significado (“Madrid revisited”, RB: 459) No caso desta memória tão ferida pela perda que se torna irredutível, tanto à reconciliação narrativa entre passado e presente, como à repetição, não há como a poesia (da literatura, do cinema) para dizer o passado de forma que a lembrança não resulte destruidora do sentido, aniquilação do presente, mas resulte companheira dele, na melancolia resignada e firme de todo o encontro que se sabe desencontro. Nestes casos não podemos recorrer senão a palavras que são coisas (“And immediately Rather than words comes the thought of high Windows”): imagens continuam actuais . Entretanto “Misturei do cinema): salvar as imagens da lembrança e da repetição, torná-las algo que continua , eu na imaginação, mantendo-as como condição subjectiva de sentido. É este, diz Belo, o justo relacionamento poético (não diretamente, redutivamente autobiográfico) do artista com a própria palavra e com o papel da própria vida na escrita, é este o justo relacionamento hermenêutico (não narcisista), do leitor e do espectador com a expressão artística, acolhida não no voyeurismo esquizofrénico de colecionismo casuísta, mas num envolvimento reflexivo produtivo de sentido e não apenas de frustração e reiteração interminável: 13 Nada penses ou faças vai-te embora tu serás nessa altura jovem como agora tu serás sempre a mesma fresca jovem pura que alaga de luz todos os olhos que exibe o sossego dos antigos templos e que resiste ao tempo como a pedra que vê passar os dias um por um que contempla a sucessão de escuridão e luz e assiste ao assalto pelo sol BRISAS

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150 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS daquele poder que pertencia à lua que transfigura em luxo o próprio lixo que tão de leve vive que nem dão por ela as parcas implacáveis para os outros que embora tudo mude nunca muda ou se mudar que se não lembre de morrer ou que enfim morra mas que não me desiluda (“Muriel”, RB:752) II. O DESENCONTRO NECESSÁRIO CONNOSCO – ENTRE CINEMA E POESIA Mas como consegue a poesia (da literatura, da dolorosa que as vidas dos poetas podem ter, música, do cinema, das artes plásticas) esta ao escrever não apenas os próprios textos mas façanha de salvar , romanticamente, alguns também as próprias existências como poesia) momentos da nossa vida, tornando-os imagens que o derradeiro poema do derradeiro livro que não são nem repetição nem lembrança, nem com que Ruy Belo se despede desta terra de imitação nem objecto perdido, mas condições alegria e de sofrimento que é estar no mundo de sentido, situações atuais de compreensão e tenha este título, emblemático de todo o seu expressão de nós mesmos que continuam , em percurso artístico e biográfico, em que muitos que continuamos , em que andamos, em que foram os desencontros: com o catolicismo, com a vivemos? e talvez venham aqui para salvar este momento para salvar romanticamente este momento (“Esta Rua é alegre”, RB: 305) Como consegue a poesia fazer daquele desencontro que é todo o encontro connosco algo de dolorosa, magnificamente necessário? Esta pergunta encontra na lírica de Ruy Belo uma resposta tão discreta quão eloquente, tão elusiva quão exemplar. A última obra publicada em vida por Ruy Belo, Despeço-me da Terra da Alegria , conclui-se com uma secção constituída por um único poema longo: “Enganos e desencontros”, escrito em Madrid em 1977. Pode ser meramente casual (sendo a morte de Ruy Belo tão violentamente prematura que não nos é fácil aceitar que ela tenha sido longamente preparada, como o poeta irónica-aziagamente declara: “Entramos no inverno. Quantos são?/ Tenho uma vasta obra publicada/ e tenho a morte em preparação” (“Mudando de assunto”, RB: 320). Mas quando 14 são carregadas de significado, as coincidências ganham o poder simbólico da fatalidade. Assim se torna singularmente poético (daquela poesia instituição académica, com a política (sendo ele alguém que foi visto com suspeita por todos os poderes), com as intermitências de um coração vulnerável em todos os sentidos. A vida é uma cadeia de enganos, autoenganos e desencontros (sobre si e consigo, sobre e com os outros, as circunstâncias, as coisas), diz este título que a sua colocação editorial torna testamentário. Sendo, todavia, que este lema nos é dado não numa afirmação filosófica, nem como trecho de uma conversação com o nosso parceiro de viagem no comboio, na verdade inconfutável da banalidade (afinal, poderíamos objectar: BRISAS 13 É importante reconhecer a natureza hermenêutica e não pessoal desta salvação. Na sua humildade de poeta pós-messiânico, Belo realça continuamente que este resgatar a vida como sentido, esta forma poética de continuar , não é, de todo, do ponto de vista existencial, uma vitória sobre a morte. Leia-se, por exemplo, a até meteorologicamente emblemática, já citada, elegia “Através da chuva e da névoa”: “Que importa que algures continues?/ Tudo morreu:/ tu eu esse tempo esse lugar.” A divergência insanável entre sobrevivência do poema e morte do poeta é uma obsessão beliana. O autor foi demasiado cabalmente católico para se render a formas substitutivas e incompletas – porque não integralmente corpóreas – de salvação estética: a sua condição de desistente (da fé) proíbe-lhe a fé em todas as alternativas menores (E.H.P.s, RB: 250).

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151 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS “Isto porém são coisas que há já algum tempo se coisa que é dita, porque as palavras são coisas sabem” [“Esta Rua é alegre”]), mas como título representadas, que se diferenciam das coisas de um poema, a questão que o poema levanta vividas numa obliquidade tão irredutível quão e à qual tem que responder é: como é dito isto necessária para as na poesia? Porque é dito como poesia? Mais não apenas do texto). Desencontrar-se na escrita profundamente: haverá uma necessidade, seja (separar-se do que se sente e da actualidade porventura artística seja existencial, de o dizer da experiência para os converter em escrita, como poesia? Será poesia precisamente uma em expressão: “Escrever-te é a maneira de te forma de lidar com o problema designado por ter presente” (“Enganos e desencontros”, RB: esta afirmação? A questão posta pelo poema, por outras palavras, se nas palavras”, é reconhecê-la “condição não é a pertinência biográfica ou filosófica desta indispensável do poema” e, reciprocamente, afirmação (a sua justeza particular e individual reconhecer o poema como indispensável ou universal), mas a sua pertinência poética: o condição de sentido da vida: “ilustrar um pouco seu tornar-se condição de escrita. Porque é que desta vida que se perde/ e não só ao viver-se o poeta precisa, como consegue fazer poesia da mas ao pensar-se sobre ela/ ao atraiçoá-la tantas condição de desajustamento cognitivo (engano) vezes como condição indispensável do poema” e existencial (desencontro) que é viver? E o (“Esta Rua é alegre”, RB: 305). 15 que se torna viver ao ser dito como poesia? Notoriamente, Ruy Belo reivindicou como desencontros”: “princípio fundamental da sua estética” (E.H.P.s, unidade” (RB: 846). É preciso separar-nos de nós RB: 253) o facto de que “[Não] costumo por mesmos, ou melhor: é preciso reconhecer esta norma dizer o que sinto/ mas aproveitar o que diferença – temporal, representativa, pulsional – sinto para dizer qualquer coisa” (“Esta Rua que nos atravessa, e dar-lhe expressão textual, é alegre”), acarretando isto que a escrita é para recuperar, na exterioridade da palavra, essencialmente um desencontro consigo, um uma unidade que a nossa consciência do eu desencontrar-se de si (daquilo que se sente) nos recusa, um sentido da experiência que nos para se re-encontrar em algo de diferente, como percorre e nos divide. Por esta razão, este algo de diferente (como palavra do texto: a “encontrar” sentido no desencontro da palavra 16 17 18 salvar como coisa da vida e 847) é a condição para que o que se vive ganhe sentido. Atraiçoar a vida, perdê-la, “suicidar- O ponto é que, como diz “Enganos e “Sem alteridade não há 19 BRISAS 14 Em “Breve programa para uma iniciação ao canto”, prefácio de Transporte no tempo, a escrita é explicitamente qualificada - de forma auto-transgressivamente autobiográfica - como uma opção de morte: “Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me /.../ Ao escrever mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conveniência como a ordem, qualquer ordem estabelecida. //...// O poeta, sensível e até mais sensível porventura que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida privada,” (RB: 367-368). 15 Sobre o desencontro como figura central da poesia beliana, cf. Golgona Anghel, “Figuras do desaparecimento”: o fugitivo, o intervalo, o desencontro”, Literatura explicativa , op.cit.: 289-299. 16 “Estou sozinho e então converso com a noite/ das palavras que nos subjugam nos submetem/ As coisas passam e em vez delas é aceite/ o nosso sistema de signos onde as metem (“Como quem escreve com sentimentos”, RB: 669) 17 A poesia diz toda a verdade, mas di-la slant , obliquamente, declara Emily Dickinson (cf. “Tell all the truth but tell it slant -/ Success in Circuit lies” [F1263]/J1129): não há correspondência biunívoca entre as palavras e as coisas e é nessa não especularidade que as palavras se autonomizam, pondo em questão a verdade das coisas, as coisas como verdade, mas dando-lhe a única forma de sentido que podem ter para quem as vive. 18 Coisas ditas que não são coisa maior do que as vividas, mas de que o poeta não escapa: impõem-se-lhe como inevitáveis: “Sei que isto não é grande coisa/mas nenhuma outra coisa me é dada” (“Idola fori”, RB: 342)

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152 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS com a vida não acontece por adição, mas por apocalipse, derramando a taça do fim no rio do subtração. A palavra poética não explica, tempo, o poeta sabe que não há nada a fazer 20 não conta, não reconstrói, não acrescenta algo, contra este passar (sendo ele suprema apenas vê: pronuncia a verdade tão recalcada perceptiva, ontológica e científica: do nosso despossessamento, do nosso não termos lugar nem no tempo nem no espaço nem do que dizer a circularidade entre este passar e na nossa interioridade, porque tudo nos é dado vê-lo, a circularidade entre ver e ser o que se vê como perda. Da perda, que nos tira todo o lugar, não sendo ele, sendo, mais fundamentalmente do a palavra faz o próprio lugar, desajustada de nós que toda a substância, apenas o passar comum a ao fazer sentido da nossa falta de sentido (da todas as ‘substâncias’ (ser humano, água, árvore) nossa falta de algo que seja nosso), enunciando – “E eu que passo quando vejo que ela passa/ esta falta como lei do tempo – em que o agora é que sou eu próprio água que circula e passa.” aquilo que passa, sem voltar – e da consciência – em que ao vermo-nos nos tornamos outros de nós: “Às vezes se te lembras procurava-te/ retinha-te esgotava-te e se te não perdia/ era só por haver-te já perdido ao encontrar-te” (“Muriel”, RB: 74). A vida em si é passar, nada senão passar, numa condição universal que não pode ser reduzida a síndrome individual e psicológica, porque é cariz metafísico do estar no mundo: Em certa casa certa coisa certa causa eu precisamente eu homem que em ver cair a água põe a sua maior mágoa a mágoa de algum dia a ter de deixar de ver e de a deixar de ver por deixar de viver vejo com mágoa que incessantemente passa a água E eu que passo quando vejo que ela passa que sou eu próprio água que circula e passa vejo passar também vizinhas e amigas árvores (“Pequeno périplo no fim do ano fim do mundo”, RB: 488) Homem-água, homem-passar, “homem que em ver cair a água” se vê a si mesmo e tudo o que é, o testemunho que não tira o olhar do anjo do certeza certa casa certa coisa certa causa ); não há mais nada a fazer O sol a sombra a cal os pássaros os pés o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és? Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada (“O jogador de pião” [e “Variações”], RB: 219 [-226]) Que importância pode ter a diferença de substância (ser água, homem, árvore) se afinal tudo não é mais do que passar, vertiginoso rodopiar? Nenhuma importância: a diferença ontológica é puramente irrelevante. O que faz diferença para o homem é a mágoa que ele sente e a palavra que a exprime: o dizer-se da mágoa como desencontro do homem com o próprio desencontrar-se, a resignada não aceitação de ser mais nada do que água que passa: Que posso eu fazer por tudo isso agora? Talvez dizer apenas chovia e vi-te entrar no mar E aceitar a irremediável morte para tudo e todos (“Através da chuva e da névoa”, RB: 340) Dizias qualquer coisa? Esta manhã? Perfeitamente (“Enganos e desencontros”, RB: 859) BRISAS 19 A qualidade oximórica – de contradição inultrapassável - e não dialéctica desta unidade é que determina a sua enunciabilidade poética e não conceptual: “O agora do corpo une-nos à morte, porque todos os paraísos se baseiam no presente/ mas ao matar a morte matam o prazer” (“Enganos e desencontros”, RB: 845). 20 Leia-se aquele pequeno manual de instruções poéticas que é o poema em prosa “Os fingimentos da poesia”, RB: 360, em que Ruy Belo descreve como escrever poesia seja tirar matéria da vida, “isolando” palavras num processo de ‘objectivação’ que é percebido por alguns como desumanização, como falsificação do vivido, quando é pelo contrário a pura, simples visão, o puro dizer apenas, que são visados: “Semelhante descrição parece-me ilustrar um dos caminhos do poeta. Arranca esse senhor à linguagem quotidiana aquelas palavras que lhe faltavam para fechar um poema. Como é que lá chega? Pegando naquilo que vê, pensa ou sente e sacrificando-o ao fio da sua meditação. Despreza aquele conjunto de circunstâncias que rodeavam a palavra e dá nova arrumação à palavra liberta. Tanto faz que se fale de desumanização, como de falsidade, como de fingimento.”

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153 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS “Mas que dizia eu? Dizia apenas “esta rua é alegre” “ (“Esta rua é alegre”, RB: 305) Para termos sentido, o que é preciso é apenas dizer/dizer apenas . Dizer é em si perfeito (isto é: completo, definitivo), se conseguir manter o silêncio em relação ao mais que não cabe no olho apertado da agulha da palavra (que, afinal, confirma-se em silêncio , “Enganos e desencontros”, RB: 845). 21 Dizer apenas é seleccionar, pôr fora do discurso “[O] mais que é só comigo e com a subjectiva forma como passo a minha vida” (“Esta rua é alegre”, RB: 305), que excede essa forma objectiva e até mesmo impessoal que é o propósito da poesia ao focar-se na visão do essencial (de não sermos mais do que um agora que incessantemente passa ), descartando o ruído que apaga a forma na negação do limite e da perda (porque a forma é finitude irrevocável do limite, é renúncia, assunção da falta como condição necessária); na ilusão do possesso, do lugar, da permanência; na ilusão de tudo o que preenche, levando- nos a acreditar que a vida seja nossa; na ilusão de uma euforia que não é alegria (porque a verdadeira alegria sabe-a só o homem triste), mas ocultamento e negação. A mágoa e a palavra são dadas ao homem como possibilidade de fazer sentido do não ter sentido nenhum o seu passar como água, como “árvore, como coisa que dorme (o morto dorme o sono das coisas, convivendo com minerais”, RB: 868) 22 ao interceptar o agora (que é uma única forma de viver que nos é dada) precisamente tal qual ele é: corte em que desparecemos, incessante separação de nós mesmos, diferença. Dizê-lo faz sentido do não sentido do agora ao tornar-se forma de vê-lo tal qual ele é: momento de singularidade irrepetível, que exactamente pela própria efémera unicidade necessita de ser salvo não na simples lembrança (na sua reprodução mnemónica, puramente mimética), mas na visualização irrevocável da palavra que não permanece mas dura, continua . 23 Todo o poema será então uma colina do instante (RB: 382), um instante tornado colina, tornado lugar que se destaca no horizonte da vida e que continuamos a ocupar depois de o instante ter passado, não porque simplesmente o lembramos (como passado perdido que reconstituímos na falsificação da imitação, na reprodução estéril da sua cópia mental), mas porque nele continuamos a viver como dimensão que define o nosso estar no mundo, nele continuamos a viver não como passado lembrado, mas como actualidade que não permanece, mas dura. Nem todo o nosso passado pode tornar-se este lugar em que continuamos a habitar, nem todos os instantes podem tornar-se colinas, podem ser salvos na palavra como o sentido que nos define. Por isso, é importante saber ver, diz Belo, saber identificar o que está em frente de nós na diferença qualitativa das nossas experiências, conscientes de que aquilo que podemos salvar são apenas instantes, não vidas: momentos que 24 dão forma, sentido, àquilo que somos. Por isso, BRISAS 21 Porque se “o silêncio é o sinónimo da vida” (“Como quem escreve com sentimentos”, RB: 669), uma poesia viva só pode ser uma poesia silenciosa como aquela que Ruy Belo esperava que fosse a sua (cf. RB: 22, em “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição”, prefácio à segunda edição, de 1972, de Aquele Grande Rio Eufrates ). 22 Assim o poema disperso encontrado depois da morte do poeta, em que o poeta se descreve no depois da própria morte: “[um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri]”, RB: 867-868. O devaneio do olhar profeticamente póstumo de si mesmo é tópico recorrente em Ruy Belo (próximo nisto a Emily Dickinson, que nesta chave de antecipação post mortem escreveu algumas das suas obras primas absolutas. Cf. “Because I could not stop for Death”, F479/J712, e “I heard a Fly buzz - when I died” (F591/J465), mas também “I heard, as if I had no Ear” (F996/J1039).

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154 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS o cinema é, diz Belo, uma escola de visão, um Não é a história poderosa do amor infeliz de 25 meio incontornável de aprendermos este ver um par de adolescentes-flores decepados que salva o momento como sentido: os grandes pela cegueira e os preconceitos dos adultos, filmes são poemas onde o cinema nos ensina a ver , RB: 250. Os filmes são poemas porque pelos tabus sexuais, as convenções sociais e os 26 o que eles fazem basicamente e melhor não é imperativos do sucesso e do desempenho, que contar histórias (para isso temos os romances, interessa primariamente a Belo, mas a capacidade temos as biografias, os mitos e a historiografia), do filme de representar de forma meta-simbólica mas selecionar, separar, reconstruir o limite a peculiar função simbólica comum à palavra das situações como condições de sentido, poética e à representação cinematográfica na capturando-as como num diapositivo : “Mesmo sua expressão da experiência humana: 27 poemas realistas como ‘Aos homens do cais’ e ‘Os estivadores’ foram escritos sobre diapositivos, com o campo do olhar já claramente delimitado.” (E.H.P.s, RB: 250) 28 É essencial, para entender a ligação profunda de Ruy Belo com o cinema como escola em que aprendemos a ver, reconhecer esta dinâmica poética e não narrativa de concentração, selecção, condensação, que ele reconhece como dispositivo fundamental paralelismos instituídos por esta descrição e as da linguagem cinematográfica. É um aspecto suas consequências: que foi já evidenciado ao discutir o encontro desencontrado entre “Muriel” e “Muriel”, filme e - se poema, mas que resulta nitidamente perceptível também na sua descrição do filme de Elia Kazan Esplendor na relva. nem o retrato genial de uma geração oprimida É de notar que, em «Esplendor na relva», se recolhe o momento preciso em que Natalie Wood, actriz maravilhosa, que no filme encarna a delicada e fresca figura de Deanie Loomis, muito bem dirigida por Elia Kazan, procura em vão comentar numa aula um excerto de um poema de Wordsworth sobre a fugacidade da vida, e a necessidade, como condição de felicidade, de colher a flor no próprio instante que floresce. (E.H.P.s, RB: 250) É de notar , é preciso colher, aqui, a cascada de a necessidade de colher a flor no próprio instante que floresce é a condição de felicidade ; - se a palavra poética é (auto-reflexivamente) condição de reconhecimento e de expressão BRISAS 23 Sendo que a única forma de permanência nos é dada pela morte: “A morte é a promessa: estar todo num lugar/ permanecer na transparência rápida do ser” (“Ácidos e Óxidos”, RB: 213). 24 “Eu vinha para a vida e dão-me dias” (RB: 279) 25 Há uma vasta literatura sobre a ligação da poesia de Ruy Belo ao cinema. Entre muitos, cf. Diana Pimentel, “Notas sobre cinema em Ruy Belo”, em Literatura Explicativa , op. cit.: 145-154. 26 “De como um poeta acha não se ter desencontrado com a publicação deste livro. Explicação preliminar à sua segunda edição”, Homem de palavra[s] , RB: 245-253 (a seguir, citado como E.H.P.s). Neste texto escrito em Abril de 1978, poucos meses antes da morte, Ruy Belo dá algumas indicações poetológicas fundamentais sobre a própria escrita em geral e também, em particular, sobre a sua relação com o cinema. 27 O poder icónico do cinema, esta sua capacidade de criar imagens definitivas, pode ser tão forte que se afirma até quando o filme fica não realizado, apenas fantasma imagético do realizador. Leiam-se os versos de “Uma árvore na minha vida” (RB: 676):”Fora uma pessoa despreocupada ao longo de toda / a vida um dia porém conheci a mulher alada/ por charlie chaplin somente em the freak conhecida e transfigurada / conheci-a e desde esse dia nunca mais fui nada”. The Freak, evocado no poema, é um filme em que Chaplin começou a trabalhar em 1969 sem chegar à sua realização. Deveria ser a história de uma rapariga sul-americana a quem nasce um par de asas e a sua protagonista devia ser a filha de Chaplin, Victoria, na altura estupenda adolescente. Fotos de Victoria com grandes asas brancas são publicadas no livro de Chaplin My Life in Pictures (1974). 28 “Aos homens do cais” RB: 269; “Os estivadores” (RB: 282). Outros poemas referenciados na E.H.P.s, como explicitamente relacionados com o cinema são: “Humphrey bogarth”, RB: 270; “No way out”, RB: 276; “Vício de matar”, RB: 280 (todos em Homem de palavra[s] ), e “Na morte de Marylin”, RB: 443 (em Transporte no tempo ).

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155 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS simultaneamente desta condição e do seu dado reconhecermo-nos por aquilo que somos, fracasso (como exposto na cena em que Deanie numa impotência de felicidade que não se Loomis, ao ler, ou melhor, ao não conseguir ler o resgata em palavra, mas na palavra reconstrói a poema de Wordsworth, chega a ver exactamente própria dignidade de condição humana: o que lhe aconteceu; como acontece connosco ao ler o poema de Wordsworth ou ao ver Natalie Wood-Deanie Loomis); - se o que torna o cinema uma escola em que aprendemos a ver é a sua capacidade de recolher o momento preciso em que se manifesta a nossa incapacidade de o fazer (porque quem é capaz de ser feliz, de colher a flor no próprio instante em que floresce, atire a primeira pedra), o nosso reconhecimento dela, assim como a nossa incapacidade de considerar esta sua expressão simbólica (a palavra poética) como compensação adequada do instante não colhido (porque a 29 poesia, a arte, “não substituem” a vida, apenas ajudam a dar-lhe sentido ao dizê-la); 30 - se isso tudo é verdade, então, é precisamente na articulação da diferença e interdependência entre experiência de vida como incapacidade de colher o instante do florescer e expressão artística (palavra poética e representação cinematográfica) como capacidade de recolher o momento preciso da consumação e do reconhecimento desta incapacidade existencial, que se institui o sentido, numa imagem que não é imitação mnemónica do passado, lembrança, mas visualização da nossa situação actual. Imagem como sentido, identificação do momento preciso em que nos é Foi uma rosa rubra a autora desta obra aberta e arrogante grácil flor do instante que triunfante não há coisa que não abra para ferir quem a viu e morrer de repente (“Como quem escreve com sentimentos”, RB: 671) A poesia nasce de uma flor do instante , que fere quem a vê para a seguir imediatamente se apagar. O que fica é a ferida de ter visto , é a ferida rubra da palavra que testemunha que quem viveu não apenas lembra, mas viu o que se deu, o reconheceu por aquilo que é, e neste reconhecimento se conhece: “(e aquele que no auge a não olhar/ que saiba que passou e que jamais/ lhe será dado a ver o que ela era) (“Esplendor na relva”, RB: 333). Nunca seremos capazes de “colher a flor da felicidade”, mas podemos – temos de – ser capazes de “ver o que ela é, de olhar para ela no seu auge”, porque “[N]inguém, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era para os gregos” (E.H.P.s, RB: 250). O que tira todo o sentido à vida (ao instante, em que ela se oferece a nós) não é que ela passa (que ela “murcha, morre de repente”), mas desistir dela porque passa, de nós porque passamos: A vida passa e em passar consiste e embora eu não tenha a que tinha ao começar há pouco esta minha evocação de Deanie quem desiste BRISAS 29 “Que importa que algures continues?/ Tudo morreu:/ tu eu esse tempo esse lugar/ Que posso eu fazer por tudo isso agora? /Talvez dizer apenas/ chovia e vi-te entrar no mar/ E aceitar a irremediável morte para tudo e todos” (“Através da chuva e da névoa”, RB: 340). 30 Que esta interdependência entre experiência de vida e expressão artística, em que se constitui o sentido, seja por sua vez apenas uma convergência desajustada, uma forma de desencontro, é condensado de forma tocantemente inesquecível no bloqueio de Deanie, na sua incapacidade de levar a cabo a leitura: a poesia não salva, em Elia Kazan, em Ruy Belo. Apenas diz a nossa perdição como condição de sentido, em que, melancolicamente, se dá a nossa condição humana.

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156 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS na flor que dentro em breve há-de murchar? Ai de quem “desistiu na flor do instante” só vejo”), porque o instante em que o ver se dá é o porque condenada a passar. Ai de quem desistiu mesmo instante em que ele começa a ruir (“pois de olhar, frontalmente, directamente, a ferida sei que dentro em pouco deixarei de ver-te”). que o instante nos inflige ao passar. Afinal, o Contudo, estar dentro do ver (do seu incessante que temos da vida é precisamente este olhar de desmentir-se e desencontrar-se) é a única forma frente a sua inultrapassável passagem, este seu de ter a vida que passa, de se reconhecer parte inexorável perdê-la: Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te Eu aprendi a ver a minha infância vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos e penso que se bach hoje nascesse em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior que esta mesma tarde num concerto ouvi teria concebido aqueles sweet hunters que esta noite vi no cinema rosales Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem E penso que se nunca a bem dizer te vejo se fosse além de ver-te sem remédio te perdia (“Muriel”, RB: 750 ) 32 Na verdade, a bem dizer , nem ver nos é dado olhar já claramente delimitado” (identificando com a plenitude que quereríamos: também o acto de olhar está absorvido no processo como entrópico da passagem. Ver é um instante que mesmos”, sem pretensão de acrescentar nada passa, não podemos ter nenhuma certeza dele. – explicação, qualificação, determinação - ao A bem ver, “nunca se vê (nunca a bem dizer te seu simples ser vistos). Cortar momentos na vejo)”: ver é um perpétuo desencontro consigo (“Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te dela, é a única forma de lhe dar sentido (criar uma relação com ela de que nós sejamos autores e não simples, passivos, efeitos): “se fosse além de ver-te sem remédio te perdia.” 33 Recortar o instante - da vida, da visão – como lugar da nossa inserção de sujeitos no mundo é o que faz a arte; não nos reduzir a objectos (de lembrança, de repetição, de desejo), mas manter-nos sujeitos de sentido. E o cinema ensina-o à poesia, aprende-o da poesia, como em Kazan, numa mútua circulação de aprendizagem de olhar. A poesia deve escrever como o cinema filma: “sobre diapositivos, com o campo do coisas 34 e mulheres recortadas , seres e coisas 35 objectos recortados, “deixados a si 36 37 BRISAS 31 “Tu eras como a flor do momento/ colhia-te e perdia-te e nasci no campo/ e todos lá morreram e ele hoje é para mim/ mais real do que então pois é só pensamento” (“Ao regressar episodicamente a Espanha. Em Agosto de 1534, Garcilaso de La Vega tem conhecimento da morte de Dona Isabel Freire”, RB: 761-2). 32 Sweet Hunters (Tendres chasseurs) é um filme de 1969 dirigido por Ruy Guerra, com Sterling Hayden, Stuart Whitman, Maureen McNally, Susan Strasberg. O filme apresenta em chave não narrativa o trágico desencontro entre um fugitivo ferido e a família de um ornitólogo que se transferiu para uma ilha deserta para estudar as aves migratórias. A sua menção em “Muriel” como exemplo da música do séc. XX é mais um testemunho significativo da importância do cinema para Ruy Belo. 33 “Creio que a bem dizer não fiz mais do que olhar/ e há tão pouca gente que só saiba olhar” (“A Margem da Alegria”, RB: 612). 34 “O nevoeiro nesses domingos é como um vasto lençol no qual eu recorto coisas extintas há muito” (“Há domingos assim”, RB: 664) 35 Que voltam pelo menos em dois poemas - “Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém/mulheres recortadas nas vidraças/ oliveiras à chuva homens a trabalhar/ coisas todas as coisas deixadas a si mesmas (“Literatura explicativa”, RB: 259) - em que é realçada a captura da simples inteireza da coisa no recorte, no diapositivo da palavra, enquanto no poema posterior o que interessa é como os versos se constroem numa cadeia associativa de recortes visuais: a janela, as mulheres na sua individualidade física e existencial, nitidamente isoladas quais manchas de amarelo no verde (“bouças de tojo”), quais ciprestes, linhas que perfuram o céu (mas que, tornados chopos , enquanto o poema avança, quase não perfuram já o véu do céu , [“A Margem da Alegria”, RB: 612]): “se os crepúsculos caíam numa luz lilás/ que só vi uma vez em portalegre de uma janela da casa de josé régio/ ou os cabelos das mulheres se prendiam nesta ou naquela das mais altas bouças de tojo/ que dão àquele que passa a impressão de terem visto o verdadeiro amarelo/ e as próprias mulheres recortadas no ar crepuscular/ como ciprestes muitas vezes mas talvez umas horas mais tarde/ quando perfuram decididamente a mais escura e/ se temos o pressentimento de que alguma coisa/ vai por fim acontecer” (“A Margem da Alegria”, RB: 560). Leia-se também em “Sim um dia decerto” (RB: 672): “não saberei destes dias de nevoeiro no verão/ Quando as pessoas no ar se recortam rígidas nas silhuetas”. 36 “Sei apenas que lê não sei o quê/ / e é simples objecto recortado/ na margem verde imensamente verde/ após a água mansa que reflecte os edifícios” (“A rapariga de Cambridge”, RB: 293). 37 “Quanto eu não dava por multiplicar a multidão do mar/ quanto ó seja quem for eu não daria por ser coisas/ como aqui como cá como cada coisa aqui/ como uma cada coisa mais coisificadamente coisa” (“Agora o verão passado”, RB: 730).

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157 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS passagem do tempo sem pretender pará-la é o Eufrates”, RB:121), porque, como todo o dia, traz grande desafio do cinema (como forma musical em si o fim do homem (por isso da modernidade), da literatura: a passagem não é negada, porque as imagens correm, passam, ruem, mas encadeiam-se no olhar que as segue ( interceptando o seu auge e o seu repentino grácil triunfo morrer ) numa evolução que se desenha como uma linha (pura) que resiste à, recusa ser como agora, e diz este triunfo como perda desqualificada a, (pura) imaginação . e a sua evolução segue uma linha que à imaginação pura resiste ( “Esplendor na relva”, RB: 333) A linha evolutiva dos poemas longos de Ruy Belo é uma pura sequência de olhares que colhem momentos. A sucessão temporal assinalada pela insistida iteração de Quando, quando, quando , como de outras expressões temporais – Às vezes, Mil vezes, Hoje, Esta noite, Nunca, Há – torna-se o ritmo semântico do longo poema “A Margem da Alegria”: a escansão temporal isola momentos que se sucedem numa passagem incessante, mantendo contudo a própria unicidade, realçada pela nitidez pictórica da sua apresentação. Similarmente, “Aquele grande Rio Eufrates” é texto designado pela figura do rio, desde Heráclito epítome filosófica da passagem do tempo, corrida secada pelo fim derramado pela taça da ira divina ministrada pelo sexto anjo do Apocalipse. Todo o poema é, neste sentido, apenas poema de um dia (“Aquele Grande Rio Todos os dias são poucos para chorar o homem ). Todo o poema diz apenas o dia, no arrogante do agora, que não há coisa que não abra , porque a vida não se dá se não (porque o agora repentinamente morre tendo triunfado), ferida, linha que perfura o céu (abala a eternidade) e ao dizê-lo nesta dolorosa, despida precisão (resistindo à imaginação) de olhar, salva-o não da morte, mas como visão que prossegue, como evolução, linha que dividindo se desenrola, não pára, produzindo uma continuidade na sucessão das descontinuidades dos fotogramas, dos diapositivos, dos recortes de imagens, precisamente como faz o cinema, sublime educador do olhar. Se for verdade, como afirmava Deleuze, que o cinema produz “imagens-movimento” que instituem “blocos de movimento-duração”, o segredo comum do 40 cinema e da poesia será a força criativa desta contradição que une o que é incompatível em parcelas de visão, será a ambição impossível ( terrível , para utilizar uma palavra essencial para Belo) de produzir um tempo que se renega 41 continuando a ser o que ele é, que se nega (como permanência) ao afirmar-se (como passagem): Eu quero para mim parcelas de manhã delas farei um tempo para mim BRISAS 38 Num gesto profundamente anti-metafísico de reapropriação poética de ‘pedaços’ de experiência marcados pelo próprio cariz corpóreo. Sobre esta vertente, cf. Manaíra Aires Athayde, “Efeitos de sentido e efeitos de presença na poesia de Ruy Belo”, in Ángel Marcos de Dios (ed.). La lengua portuguesa . Vol. I Estudios sobre literatura y cultura de expresion portuguesa. Ediciones Universidad Salamanca, 2014: 345-356. 39 “Quando o sexto anjo lançou a sua taça sobre o grande rio Eufrates, as suas águas secaram, de modo a preparar o caminho aos reis que vêm do Oriente” ( Apocalipse , 16, 12). 40 L’image-mouvement. Cinéma 1. Minuit, Paris, 1983. L’image-temps. Cinéma 2. Minuit, Paris, 1985. 41 Terrível é a palavra inaugural de Ruy Belo, a primeira palavra do primeiro poema publicado, o justamente celebrado “Para a dedicação de um homem” (RB: 25): “Terrível é o homem em quem o senhor/ desmaiou o olhar furtivo das searas/ ou reclinou a cabeça/ ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina/ Não há conspiração de folhas que recolha/ a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro/ quando caminha pela tarde acima/ A morte é a grande palavra para esse homem/ não há outra que o diga a ele próprio/ É terrível ter o destino/ da onda anónima morta na praia”. A palavra-fetiche volta sempre, ao longo de toda a produção de Belo, assumindo o peso de uma qualificação metafísica: “Viste noites e dias, estações, partidas/ E tão terrível tudo, porque tudo/ trazia no princípio o fim de tudo” (“Ácidos e Óxidos”, RB: 213); “Toda a vida é terrível estes dias assassinam-me” (“Agora o verão passado”, RB: 734).

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158 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS um tempo de porvir que se detenha tempo que se renegue e seja tempo e que ao negar-se afirme a sua condição (“Um dia uma vida”, RB: 739) EM JEITO DE CONCLUSÃO A quem o quisesse encontrar, Ruy Belo deixou um recado: “Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.” (“Não Sei Nada”, RB: 354). Talvez tenhamos vindo a saber alguma coisa sobre Ruy Belo ao longo desta procura pelas suas palavras, não sei. Mas sei que estas reflexões têm uma conclusão inevitável no reenvio ao já citado prefácio à segunda edição do Homem de Palavra[s] . O autor faz nele uma afirmação tão forte que se torna título do texto e soa como uma reivindicação tão final como o derradeiro Na palavra da poesia, que salva, romanticamente, poema do derradeiro livro – um paradoxo que a não surpreende num poeta, porque, como já em que observámos, a figura da contradição que rege nela a poesia é oximórica e não dialéctica. Pode ser existiu, mas cuja vida passou para o dicionário que toda a vida e toda a poesia sejam uma forma em que ele se tornou e que agora só podemos de desencontro, mas, como poeta, Ruy Belo não procurar nas palavras – se desencontrou: Um crítico [João Gaspar Simões] “disse que, com este Homem de Palavra[s], eu, como poeta, me havia desencontrado. Ora eu creio que isso não aconteceu, embora só agora o diga. O que aconteceu foi que mais uma vez a crítica /…/ se ficou num livro passado de um autor para o voltar contra os seus livros futuros como se seus não fossem igualmente. /.../O que eu procuro evitar a todo o custo é repetir um livro, se possível um simples poema ou processos por mim já levados porventura até à exaustão. Cada livro meu, quer-me a mim parecer, é um livro diferente do anterior. (E.H.P.s RB: 245) 42 Afinal, a vida não é só lembrança e repetição. Não é só o falhar da repetição e da lembrança. Não é só procura retrospectiva, não é só caminho de regresso , mas é também aventura prospectiva, 43 futuro, novidade, diferença instaurada pela criação. “Ai [do poeta] se ....não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã” (“Breve programa para uma iniciação ao canto”, RB: 368). 44 rubra ferida aberta pelo agora, ao torná-la visão continuamos, prossegue a primavera e vemos Ruy Belo – de que sabemos que 45 caminhar entre os mais : 42 Para uma ampla panorâmica do trabalho crítico sobre Ruy Belo, cf. “Fortuna crítica de Ruy Belo”, Literatura explicativa, op.cit .: 369-387. A amplitude deste catálogo e o título escolhido realçam uma intenção de compensação retrospectiva relativamente à objetiva falta de sorte de Ruy Belo, poeta e homem muito amado mas não sempre compreendido e em vida muito pouco ajudado. Entre os textos críticos de referência, é incontornável Pedro Serra, Um nome para isto : leituras da poesia de Ruy Belo. Angelus Novus, Coimbra 2003. 43 Como declarado pelo ainda jovem poeta de Aquele Grande Rio Eufrates : “Todos os gestos/ carregados com vinte e quatro horas de história/ de ventre ferido na aventura do restolho/ petrificaram inevitavelmente/ na face orientada de uma estátua/ aqui ou noutro jardim/ Todo o caminho é de regresso/ Amanhã serei outro” (“A história de um dia”, RB: 69-70). 44 E é precisamente ao futuro da leitura, dos leitores, desterritorializados naquele espaço sem lugar que é o texto (alternativo ao portugal paradisíaco –infernal em que ele foi condenado, elegido a viver), que Belo confia a possibilidade de o encontrar autenticamente: “Se tu que és meu amigo porventura um dia/ no estrangeiro me viste foi por estar aqui e/ se me encontraste é porque não me viste (“Agora o verão passado”, RB: 734) 45 “A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar — e de se ficar – pelas palavras” (“Não Sei Nada”, RB: 354). Afinal: “Os versos que faço sou-os( “Canção do lavrador”, RB: 62). Que a morte converta todos os homens em palavras (pelo menos palavras dos outros, para os que não tiveram palavras próprias que perdurem além do seu silêncio), é melancólica convicção enunciada no poema epónimo da recolha: “Quando o silêncio um dia nos unir/ então seremos todos nós palavras” (“Aquele Grande Rio Eufrates”, RB: 123). Que haja um poema ulterior, atrás das palavras de que são feitos os poemas e os mortos, é interrogação sem resposta, ou pressentimento, que o poema - nau soturna de quem não consegue escolher entre a pedra e o mar, entre o tempo e a eternidade - entrega ao despedir-se, quem sabe?, definitivamente: “finalmente me fosse lícito fechar/ definitivamente os olhos apesar de tanto olhar/ não conseguem optar entre a pedra e o mar/ E só agora findas as palavras eu ressinto/ pela primeira vez haver talvez algum poema/ por detrás do poema pura coisa de palavras” (“Nau dos corvos”, RB: 452). BRISAS

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159 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Eu sei que Deanie Loomis não existe mas entre as mais essa mulher caminha e a sua evolução segue uma linha que à imaginação pura resiste A vida passa e em passar consiste e embora eu não tenha a que tinha ao começar há pouco esta minha evocação de Deanie quem desiste na flor que dentro em breve há-de murchar? (e aquele que no auge a não olhar que saiba que passou e que jamais lhe será dado a ver o que ela era) Mas em Deanie prossegue a primavera e vejo que caminha entre as mais (“Esplendor na relva”, RB: 333) BRISAS

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160 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ELENCO DOS POEMAS e TEXTOS DE RUY BELO CITADOS - em ordem cronológica de publicação - RB: Ruy Belo, Todos os Poemas . Assírio & Alvim, Lisboa 2014 “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição”, Aquele Grande Rio Eufrates - RB: 15-22 “Para a dedicação de um homem”, Aquele Grande Rio Eufrates (1961) (19722) - RB: 25 “Canção do lavrador”, Aquele Grande Rio Eufrates - RB: 62 “Ah poder ser tu, sendo eu!”, Aquele grande Rio Eufrates - RB: 105 “Aquele Grande Rio Eufrates”, Aquele Grande Rio Eufrates - RB: 119-132 “Portugal sacro-profano - A charneca e a praia”, Boca Bilíngue (1966): 187-188 “Ácidos e Óxidos”, Boca Bilíngue - RB: 211-213 “O jogador de pião” (e “Variações sobre O jogador de pião”), Boca Bilíngue - RB: 219 (-226) E.H.P.s - “De como um poeta acha não se ter desencontrado com a publicação deste livro. Explicação preliminar à sua segunda edição”, Homem de palavra[s] (1970, 19782) - RB: 245- 253 “Literatura explicativa”, Homem de palavra[s] - RB: 259 “Eu vinha para a vida e dão me dias”, Homem de palavra[s] - RB: 279 “A rapariga de Cambridge”, Homem de palavra[s] - RB: 293 “Esta Rua é alegre”, Homem de Palavra[s] - RB: 305 “Mudando de assunto”, Homem de palavra[s] - RB: 319-320 “Nada consta”, Homem de palavra[s] - RB: 325 “Esplendor na relva”, Homem de palavra[s] - RB: 333 “Através da chuva e da névoa”, Homem de palavra[s] - RB: 340 “Idola fori”, Homem de palavra[s] - RB: 341-342 “Não Sei Nada”, Homem de palavra[s]: Imagens vindas dos dias - RB: 354 “Os fingimentos da poesia”, Homem de palavra[s] - RB: 360 “Breve programa para uma iniciação ao canto”. Prefácio de Transporte no Tempo (1973) - RB: 367-368 “Na colina do instante”, Transporte no Tempo - RB: 382 “Nau dos corvos” , Transporte no Tempo, RB: 450-452. “Madrid revisited”, Transporte no Tempo - RB: 459 “Pequeno périplo no fim do ano fim do mundo”, Transporte no Tempo - RB: 488 “A Margem da Alegria” (1973), A Margem da Alegria (1974) – RB: 555-619 “Há domingos assim”, Toda a Terra (1976) - RB: 663-666 “Como quem escreve com sentimentos”, Toda a Terra - RB: 669-671 “Sim um dia decerto”, Toda a Terra - RB: 672- 675 “Uma árvore na minha vida”, Toda a Terra - RB: 676-681 “Agora o verão passado”, Toda a Terra - RB: 728-735 “Um dia uma vida”, Toda a Terra - RB: 739 “Muriel”, Toda a Terra - RB: 749-752 “Ao regressar episodicamente a Espanha. Em Agosto de 1534, Garcilaso de La Vega tem conhecimento da morte de Dona Isabel Freire”, Toda a Terra - RB: 757-770 “Enganos e desencontros” (1977), Despeço- me da Terra da Alegria (1977) - RB: 845-859 “[um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri]”, Dispersos - RB: 867-868 Uma primeira versão reduzida deste texto foi apresentada na sessão: MURIEL, ou LE TEMPS D’UN RETOUR ( Muriel ou o tempo de um regresso ) de Alain Resnais, do Ciclo: O escritor na sala de cinema , comissariado por Raquel Morais e organizado pela CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES – 21 de Abril de 2018 (Cascais, Centro Cultural de Cascais) BRISAS

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162 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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165 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS At an early stage of Jackie , the movie by the Chilean director Pablo Larraín on the First Lady who introduced the idea of glamor in the White House (Aparício 2001), the viewer witnesses her dialogue with a journalist that brought to my mind a famous statement in John Ford’s The man who shot Liberty Valance : “This is the West. When the legend becomes fact, print the legend.” More than detecting the (obvious) analogy between the building of a legend, or of a myth which runs through both films, what reminded me of that statement was a single word: publish . Indeed, at the beginning of that talk between Jackie and the journalist, she recalled him that in those early 1960’s information was no longer confined to the news published (printed) by the press; now there was a new media that put the image at the heart of communication, enhancing another kind of impact – hopefully more immediate and efficient - with the viewer. After all, her husband’s own election had been deeply indebted to the power of the image: the sweat stains on Nixon’s face and body during the televised debate with the future President Kennedy that deeply contributed to evidence an … within few years after Arthur won all the north, Scotland, and all that were under their obeissance. Also Wales, a part of it, held against Arthur, but he overcame them all, as he did the remnant, through the noble prowess of himself and his knights of the Round Table. Sir Thomas Malory, Le Morte d’Arthur Adam called his house heaven and earth; Caesar called his house, Rome; you perhaps call yours … a scholar’s garret…Build therefore your own world. As fast as you conform your life to the pure idea in your mind, that will unfold its great proportions. Ralph Waldo Emerson, Nature AURORAS ESTÉTICAS Jackie in the Kingdom of Camelot MÁRIO AVELAR 1 1 Full Professor

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166 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS apparent fragility of the Republican candidate, the one which arises from Ralph Waldo Emerson, contrasting with the equally apparent, jovial where it is put forward at the confluence between and self-reliance of his young opponent - only power and the virtue of reason that emanates later would its serious and debilitating health from nature: “Power is, in nature, the essential problems become public. [In a brief digression, it should be noted that In an interview with while there is a certain tendency to emphasize Larraín refers to JFK’s awareness of the power youth as JFK’s euphoric feature, we may be led of the media – “a great intelligence about the to forget that the above mentioned episode media” (LARRAÍN, 2017: 16), namely when, on a summons another notion central to the American somewhat prescient impulse that his wife would imaginary, the one of self-reliance. This, in turn, is become an icon of emerging pop culture, he had anchored in a discourse that deeply contributed suggested the celebrated to the mythical consecration of this imaginary, which I will return ahead. measure of right.” (EMERSON, 1985: 191)] Cahiers du Cinéma , Pablo 2 White House Tour, to AURORAS ESTÉTICAS Fig. 1 - Lincoln’s room at the White House 2 “une grande intelligence des médias”, my translation.

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167 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS 3 “un rapport entre la ressemblance et la dissemblance à une autre forme au chose”, my translation. 4 “… elle [Jackie] écrit son futur, celui de son mari et même celui du pays. C’est comme si le present des décisions et des actes était une manière de rattraper par la main du passé le future qui s’écroule. Pour conjurer l’oubli, l’évaporation qui les menace tous, elle organise et calcule la nostalgie, léguant à l’avenir une série de fétiches évoquant aussi bien le désastre (la robe tachée de sang, qu’elle arbore comme un emblème, à la manière d’une veuve shakespearienne), le pouvoir dynastique (la mise en scène des enfants) que la grandeur perdue.” My translation. Jackie’s iconic configuration acquires a quaint singularity in Dallas tragic moment: “…for a time she was bigger than any star, bigger than Marilyn or Liz. She was the Widow — an embodiment of grief, symbol of strength, tower of dignity and, crucially, architect of brilliant political theater. Hers was also a spectacularly reproducible image.” (DARGIS, 2017) Hence, as Manohla Dargis well recalls, Andy Warhol, who so much contributed to the confirmation of her iconic configuration, chose, for his sequence of portraits, countenances caught before and after the murder. It is thus in the broader context of a time when the image begins to impose its centrality in ordinary social interactions that, when someone suggests her to remove the dress stained with JFK’s blood, she refuses and contends: “I want them to see what they have done.” And in this assertion - and in this gesture - she begins to unravel the iconic essence of an instant and of its main players, which Nicolas Maury identifies through Marie-Josée Mondzain’ essay Homo spectator : “a relationship between resemblance and dissimilarity to another form to thing” (MAURY, 2017: 12). Thus 3 she begins to organize the nostalgia that will involve the aura of the assassinated president. French critic Jean-Philippe Tessé develops this aspect while signaling her intuitive intelligence in a moment that was supposed to be subdued by the pathos: ... she [Jackie] writes her future, that of her husband and even that of the country. It is as if the present decisions and deeds were a way of catching up with the hand of the past the collapsing future. To ward off forgetting, the evaporation that threatens them all, she organizes and calculates nostalgia, bequeathing in the future a series of fetishes reminiscent of disaster (the dress stained with blood, which she wears as an emblem, in the manner of a Shakespearian widow), the dynastic power (the staging of children) that lost greatness. 4 (TESSÉ, 2017: 9) As evidenced by this symbolic framing of her gestures, blood stains on the dress are not limited to a dramatic display and/or reminder of the event, to a pathetic exploitation that the future would trivialize through a certain aesthetic and media ethics. Martine Joly argues that “it’s never too much to insist on remembering that images are not the things they represent, but that they use them to talk about something else.” (JOLY, 1994: 86) Thenceforth, from that moment on, the dress, which would be suspended in time, preserved as it had remained on that fateful afternoon, would persist, beyond the present, in a symbolic duplicity: as a sign that revives - turns back to life - the tragic moment in which America began to lose its innocence; and as a kind of secular relic, an embrace of the mnemosyne that recovers another past, the historical one, as it becomes part of a tradition going back to the early Puritan communities of colonial America. I am referring to the hagiographic tradition, enshrined in the innumerable narratives of the lives of the saints, that is, of the members of New England colonial commonwealth that were thus conceived. The legislation passed by a Plymouth court in the late seventeenth century institutionally clarifies this dimension: “Voted that the earth belongs to the Lord; voted that the AURORAS ESTÉTICAS

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168 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS earth is given to the saints; voted that we are the the fiction that simulates the documentary, and saints.” (TELLES, 1990: 133) Despite the Catholicism of the presidential myth, I am thinking of the narrative generated family, that tradition of saints or martyrs around the JFK-Jackie couple. This, on the other (something that would not be strange to the aura hand, also abides a double mythical soil: that of that would involve JFK) secular relics shares a the American imagination which, at its roots, is historical legacy of Protestant anchorage. And anchored in Puritanism and reconfigured by the Jackie reveals an obvious consciousness of this Enlightenment generations, and that of an ideal of fact. An excellent example of historical legacy that Jackie / Natalie Portman evokes in the phonic awareness is the aforementioned White House Tour , register, to which I will return ahead. organized and shown by CBS on Valentine’s Day 1962. Larraín revives it in an obsessive attention Let us ponder on the first aspect, the American to detail: the exact reproduction - in space and imaginary. time - of the course Jackie conceived, her dress, her intonation and expressions - facial tics-, the I mentioned above a certain secular hagiographic frames and the simulacrum of the movie camera - a tradition, model identical to the original that captured those minutes. Photography director Stéphane Fontaine imaginary and participates in the identity of that explains how he framed the visual and aesthetic segment of the New World that, from colonial process of filming the whole scene: At first, we even imagined integrating Natalie [Portman, the actress who plays Jackie] into the archive footage. We did some experiences, and it was possible, but it took a lot of time, and therefore money, so we have renounced. Finally, we shot with the 80s three-tube camera that Pablo used for No, that we passed black and white. As this is a technically limited camera, and poorly tuned, the rendering was quite close to the images of the archive. I pushed the DIY by filming with the camera 16 the video back on an old tube monitor. So there is a mix between the frame of the video camera and that of the screen, and the texture and grain of the 16mm. I did not have time to do the whole sequence like that, but we still have some shots in the movie. (FONTAINE, 2017: 20) 5 It was thus in the tension of a space between enunciation of this Protestant ethic in which most its memory - the White House Tour - that Larraín conceived its approach to the myth. When I write cavalry inherited from the Old World, which is not strange to a certain imaginary of the South and cemented by Puritan rhetoric, which, since colonial times, has integrated that times on, we came to know as America. It will be in that rhetoric, however extended throughout the second half of the eighteenth century to a more general Protestant record, that a nuclear topic emerges for the configuration of this same imaginary, the ethic that the Enlightenment associates with work – one should recall Max Weber’s classic The Protestant ethic and the spirit of capitalism - and individual responsibility. It is in this context that the First Lady’s statement must be understood: “I’m just doing my job.” However, this cannot be confused with a mere AURORAS ESTÉTICAS 5 “Au début, nous avions même imaginé intégrer Natalie [Portman, a actriz que assume a personagem de Jackie] dans les images d’archives. On avait fait des essays, c’était possible, mas ça demandait beaucoup de temps, et donc d’argent, si bien qu’on a rénoncé. Finalement on a tourné avec la caméra tri-tubes des années 80 que Pablo avait utilisé pour No, qu’on a passée em noir et blanc. Comme c’est une caméra techniquement limitée, et mal réglée, le rendu était assez proche des images de l’archive. J’ai poussé le bricolage en filmant avec la caméra 16 le retour vidéo, sur un vieux moniteur à tube. Donc il y a un mélange entre la trame de la caméra vidéo et celle de l’écran, et la texture et le grain du 16mm. Je n’ai pas eu le temps de faire toute la séquence comme ça, mais il em reste quelques plans dans le film.” My translation.

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169 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Americans could feel identified with – W.A.S.P. ghosts; ghosts that persisted throughout the (White, Anglo-Saxon, Protestant). Although she obviously ignores the ominous must be lifted from the mask of this actress that significance of her gestures, Jackie’s work at the Jackie also was, above all when she took the role White House was already part of the recovery of a of guardian of the president’s memory. historical memory that would be materialized in the compilation of artifacts that made that space I mentioned above the alive – should we conceive these as secular relics accident that, while in the ambulance carrying too? Among them stands out President Lincoln’s a dying JFK, she asked the driver and the nurse manuscript of the speech he delivered after the if they knew who James Garfield and William Battle of Gettysburg during the Civil War - one McKinley were. Due to their silence, she of the most brilliant and significant fragments of explained that both were presidents murdered rhetorical conciseness that integrates American during their terms. However, everyone knew mythical discourse. This also was her way of who Lincoln - the other president murdered helping to rescue someone from oblivion. After all, the White House, where history had As she replicated Lincoln’s funeral ceremonies, been written, also was a space inhabited by Jackie was doing more than her job, she film and that were particularly prominent in the presence of the priest, a twilight John Hurt, who mnemosine . It is not by during his term - was. AURORAS ESTÉTICAS Fig 2 - Dinner at Camelot

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170 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS was contributing to the preservation of her while revisiting History, and assuming continuity husband’s memory; thus inscribing him in a with its mythical strands, Kennedy declared historical gallery of heroes, a representative man - an expression I take of the homonymous (prophetic) design. work of Emerson, in whose spectrum JFK could subscribe, and to whom it would be possible to Representation and memory are thus two traits apply the same specular diagnosis to the one the of the First Lady’s profile. When the journalist Concord’s thinker unveiled in Napoleon: “[He] questions it if her posture was a sign of royalty, was the idol of common men because he had in she at once opposed: transcendent degree the qualities and powers of In fact, tradition plays a relevant role in her common men.” (EMERSON, 1985: 340) As we have been observing, throughout the plane to Dallas when she memorizes a speech narrative Jackie reveals a radical awareness of in Spanish, thus evoking the ancestry of Hispanic how important representation was, and maybe mythical presence in American lands (it should (?), of her own status as an actress participating be recalled that the so-called Gentleman of Elvas in another narrative: History. And the representation, as the examples I have pointed of the European presence in the New World, the out about Lincoln illustrate, is not confined to her one of Hernando De Soto’s entrance by lands of gestures as a character-cicerone of a journey that one day would be Florida). through time. Indeed, when she shows her office at the White myth of the golden cities that at a certain stage House, two details that may be overlooked by will merge with that of the West, to the other the viewer, emerge: the paintings by Frederic tradition, the Anglo-Saxon, America owes that of Remington, the artist who probably more the Promised Land. Both converge in this image contributed to an early configuration of the West of JFK as a new Adam - also one of the mythical as myth. There he depicts the animal that best topoi of America, as shown by R. W. B. Lewis in his illustrates a nuclear element of this myth related classic with the frontier, the buffalo, however turned into a ghost of a Golden Age of American History – “The buffalo is gone, and of all of his millions Let us turn to the second aspect referred to nothing is left but bones” (LEWIS, 1955: 151), above, the ideal of cavalry inherited from the as nostalgically proclaimed Francis Parkman in Old World. This topic must be framed within mid eighteenth century. It will not be neither incidentally nor accidentally husband wherein occupied; it does so through that the frontier was the topic of Kennedy’s the analogy with Camelot, the legendary court of speech in the 1960 Democratic Convention. Then, King Arthur. Before being explicitly mentioned, The New Frontier to be his – the nation’s – political tradition . actions, namely functioning as an inclusive strategy, as illustrated by the episode on the was the anonymous author of the first narrative And if one owes to the Hispanic tradition the The American Adam – Innocence, Tragedy, and Tradition in the Nineteenth Century. Jackie’s gesture of expansion of America’s mythical dimension, and of the place that her AURORAS ESTÉTICAS

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171 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS 6 “Il y avait déjà la volonté, à la fin du scénario original, d’expliquer la naissance du mythe de Camelot; mais j’ai découvert la musique, et je l’ai utilisée pour cette longue scène où elle se contente de boire et de changer de robes em errant dans la Maison-Blanche. C’est un moment de crise existentielle, où elle éprouve les terreurs les plus profondes de la solitude, à l’intérieur de cette espèce de palais remplis de fantômes.” My translation. this topic subtly insinuates itself in the narrative suggestion: “Mica Levi’s orchestral score, with a as the director explains in a text published in the creamy dissonance of strings, does a lot of work Cahiers du Cinéma : There was already the will, at the end of the original script, to explain the birth of the Camelot myth; but I discovered the music, and I used it for that long scene where she just drinks and changes dresses wandering the White House. It is a moment of existential crisis, where she experiences the deepest terrors of loneliness, inside this kind of palace filled with ghosts. (LARRAÍN, 2017: 18) 6 The music he referred to is that of the musical performed in Broadway in 1960, whose melodies and text give a mythical aura to the somewhat dreamlike wanderings in the White House: “The blasts of Richard Burton performing songs from Camelot which run through the film remind us of the still potent fantasy of the Kennedy White House as youthful and idealistic.” (MACNAB, 2017) Thus an atmosphere is drawn; an atmosphere that, without explicitly designating the myth, hints at a euphoric discourse enhanced by the protagonists’ youth. Youth actually is a sign of an adamic dimension that metonymically summons an America in a time of change, innocence and optimism – “Don’t let it be forgot/ That once was a spot,/ For one brief shining moment/ Was known as Camelot”, emphasizes the musical subtext; the innocence that the Dallas attack sabotaged and the war of Vietnam would put an end to. However, it will be wrong to confine the melodic record to a euphoric tone. As Peter Bradshaw pointed out in his critique of the film published in The Guardian , this record develops in a space of aesthetic tension resulting from the dysphoric in suggesting both elegiac sadness and post- traumatic stress disorder.” (BRADSHAW, 217) In turn, Jackie’s voice amplifies this dysphoric suggestion by evoking a certain tragic (Gothic?) atmosphere of the South, in a convergence of sound textures - the subtleties of vocal hues and the musical text itself. Critic Robie Collin synthesizes this con-fusion: Though the breathy lilt and twang of her voice is note- perfect Kennedy, there’s something of the Tennessee Williams Southern belle about her too – demure yet strident, grief-torn yet galvanized, her soul’s ahum with the same bewitching dissonance as Mica Levi’s luxuriously heartsore score.” (COLLIN, 2017) Let us not forget that, like in the medieval legendary Camelot, Jackie also assembled a court, made up of artists and intellectuals; a court that definitely contributed to a fresh look at the exercise of the presidency. On April 29, 1962 Jack would humorously comment in one of these meetings: “I think this is the most extraordinary collection of talent, of human knowledge, that has ever been gathered at the White House, with the possible exception of when Thomas Jefferson dined alone.” (KENNEDY, 1962) When she conceived her husband’s funeral ceremonies with Lincoln’s memory in mind, Jackie was definitely confirming something singular: “There will be other great Presidents, but no other Camelot.”

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172 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS WORKS QUOTED APARÍCIO, S. (2001). John Fitzgerald Kennedy - a construção do mito . Master in American Studies, ed. pol.:UAb BRADSHAW, P. (2017). “Natalie Portman intelligent and poised as JFK’s widow”. The Guardian , Thursday 19 January (https:// www.theguardian.com/film/2017/jan/19/ jackie-review-natalie-portman-kennedy- assassination) COLLIN, R. (2017). “Natalie Portman is mesmerising as America’s First Widow”, The Telegraph . 19 January (https://www.telegraph. co.uk/films/0/jackie-review-natalie-portman- mesmerising-americas-first-widow/) DARGIS, M. (2017). “A reminder that for a time Jackie was bigger than any star”. The Telegraph. 25 February (https://www. telegraphindia.com/entertainment/a- reminder-that-for-a-time-jackie-was-bigger- than-any-star/cid/1425147) EMERSON, R. W. (1985). Selected Essays . New York: Penguin FONTAINE, S. (2017). “Un portrait cubist”. Cahiers du Cinéma . Février, 730, 19-20 JOLY, M. (1994). Introdução à Análise da Imagem . Lisboa: Edições 70 KENNEDY, J. F. (1962). “Remarks at a Dinner Honoring Nobel Prize Winners of the Western Hemisphere.” In PETERS, G. and J. T. Wooley eds. (acedido em 2018), The American Presidency Project. (https://www.presidency.ucsb.edu/ documents/remarks-dinner-honoring-nobel- prize-winners-the-western-hemisphere) LARRAÍN, P. (2017). “Les yeux de Jackie”. Cahiers du Cinéma . Février, 730, 14-18 LEWIS, R.W.B. (1955). The American Adam – Innocence, Tragedy and Tradition in the Nineteenth-Century. Chicago: The University of Chicago Press MACNAB, G. (2017). “Natalie Portman brings the mystique of an iconic First Lady to screen”. The Independent . Wednesday 18 January (https://www.independent.co.uk/ arts-entertainment/films/reviews/jackie- review-pablo-larrain-jfk-kennedy-natalie- portman-a7533041.html) MAURY, N. (2017). “Raide dengue de Natalie Portman”. Cahiers du Cinéma . Février, 730, 12 TELLES, M. L. (1990). “Um povo eleito coloniza a América”. As escadas não têm degraus - 2. Lisboa: Cotovia, 133 TESSÉ, J.-P. (2017). “Vertige et vanité.” Cahiers du Cinéma . Février, 730, 7-10 FILMOGRAPHY Jackie (2016), Realização: Pablo Larraín; Argumento: Noah Oppenheim; Banda Sonora: Mica Levi; Direcção de imagem: Stéphane Fontaine; Actores: Natalie Portman [Jacqueline “Jackie” Kennedy], Peter Sarsgaard [Robert F. Kennedy], Greta Gerwig [Nancy Tuckerman], Billy Crudup [jornalista], John Hurt [padre]

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174 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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177 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS “BREVE PÉRIPLO PEL’ A CIDADE DAS PALAVRAS”, DE MARIA DO ROSÁRIO MONTEIRO Este ensaio tem como objecto Tisanas, colectânea emblemática da produção literária de Ana Hatherly que se alteia como a criação da sua vida, como ela própria afirmou. Porque as assume como “itinerário de uma vida”, Ana Hatherly foi acrescentando Tisanas sem reescrever ou modificar as anteriores. Isso seria uma traição à concepção que as informa: serem uma “obra aberta”. De modo a delimitar o objecto de análise, esta reflexão centra-se em algumas Tisanas recolhidas de A Cidade das Palavras, reunião das primeiras 222 Tisanas . Sugiro haver uma intenção deliberada na composição das treze formas geométricas. Dada a educação religiosa de Ana Hatherly, o seu conhecimento da mitologia cristã, do pensamento oriental e da simbologia em geral, o número, no contexto das Tisanas , remete para o que é parcial e relativo, incompleto e sempre inacabado, o que se repete na inutilidade, mas que não tem fim, apesar de periodicamente interrompido. Neste treze, o quadrado negro é o centro, o elemento aglutinador. O ensaio “termina” em aberto, com uma última Tisana, que expressa a atitude de Ana Hatherly perante a vida, a academia, as mentes “cultas”, a repugnância ao status quo instituído, “JOSÉ MANUEL TENGARRINHA E A CIVILIZAÇÃO DO JORNAL EM PORTUGAL: A NOVA HISTÓRIA DA IMPRENSA PORTUGUESA – DAS ORIGENS A 1865”, DE ANA PAULA MENINO AVELAR Seminal na descodificação e compreensão de um tempo longo da “civilização do jornal”, é o trabalho de José Tengarrinha sobre a História da imprensa em Portugal. O seu estudo participa de um dos actuais campos de investigação, o das relações entre a literatura e a escrita jornalística. Importa ter em atenção o seu percurso biográfico, o qual se encontra intimamente ligado à actividade jornalística e aos estudos históricos. Ainda durante a sua intermitente frequência do curso de licenciatura, devido à sua intervenção política, interessou-se pela História oitocentista, a qual seria um dos seus tópicos de investigação ao longo da sua carreira académica. O trabalho em torno do aprofundamento do tema e a sua síntese investigativa culminou na redação da sua Nova História da Imprensa Portuguesa – Das origens a 1865 , vinda a lume em 2013. Nela José Manuel Tengarrinha desenvolveu o seu trabalho anterior, delimitando logo na introdução o objecto agora revisitado. ABSTRACTS RESUMOS

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178 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS seja ele qual for, porque a tendência será “ANA HATHERLY E A ESCRITA EM CINEMA”, sempre a do silenciamento, da normalização, DE ELISABETE MARQUES da promoção dos mais obedientes ou dos mais oportunistas. Nada como o riso para perturbar A obra de Hatherly encontra-se intricadamente a ordem. “A. H.”, TESTEMUNHO DE JOÃO MADUREIRA Conheci a Ana Hatherly em 2003, no contexto pintura, o desenho, a performance, entre outros. de uma encomenda da Culturgest, por ocasião Multifacetada, Hatherly não só soube reinventar dos seus dez anos de actividade. Foi-me as formas de escrever, como participou encomendada por António Pinto Ribeiro uma activamente na fundamentação teórica dos peça para orquestra de câmara para integrar movimentos de vanguarda que integrou. um concerto encenado. Cedo me apercebi que Realizou, para o efeito, pesquisas genealógicas estava perante alguém que nos diversos campos e analíticas da poesia visual e da poesia da sua produção artística nos mostra o quão experimental, testemunhadas em diversos intrinsecamente ligadas estão as várias artes volumes publicados. A autora procurará — uma artista multidimensional, que implica a escrita ao invés do escrito. Daí a incidência na a música e a pintura na escrita de um poema, tematização da relação entre escrita e pintura. A como implica a escrita e a fala num desenho, palavra é um signo pintado, e na qualidade de não nos deixando habitar um só destes campos, pintura interpela os sentidos, designadamente mas obrigando-nos a descobrir o espaço da sua a visão, sem que isso signifique a ausência de relação. A segunda vez que compus sobre texto pensamento ou de significado. Por essa mesma de Ana Hatherly foi por ocasião do concerto razão, Hatherly considera-se simultaneamente comemorativo dos 40 anos do Grupo de Música escritora e pintora. Por outro lado, durante os seus Contemporânea de Lisboa, em 2010. «Noite» estudos na London Film School, Ana Hatherly para mezzo-soprano e 8 instrumentistas, foi levou a cabo alguns exercícios cinematográficos. escrito sobre o poema «Noite Canto-te Noite». Entre eles, os filmes de animação (por vezes, A terceira vez que escrevi música a propósito qualificados de abstractos), nos quais aparecem de Ana Hatherly não foi já concretamente sobre figuras geométricas, sofrendo metamorfoses textos dela, mas sim um ensaio de retrato, sucessivas de formato e, nalguns casos, de cor. integrado num ciclo de estudos para piano A sequencialidade acelerada e a consequente intitulado «Estudos Literários - Retratos», em ilusão de movimento do cinema parecem 2012. O legado de Ana Hatherly — fica a sua interessar à autora, pois através deles pode presença; fica uma aguda consciência do seu produzir ou realçar modos de ver os signos tempo, tanto em relação ao período barroco que escritos pintados. Desde logo, o dispositivo estudou como académica, como em relação ao fílmico exibe a interferência de uns signos sobre tempo mecânico e tecnológico que habitava. associada à exploração da dimensão visual da palavra escrita. Primeiramente, surge inserida no movimento PO.EX, nas décadas de 60 e 70 do século XX, e depois num espaço singular de criação, em que convergem a caligrafia, a mostrar os outros. ABSTRACTS

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179 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS “ANAGREGORIANA”, DE ANA MARQUES GASTÃO Ana Hatherly emprega a linguagem da DE JOÃO ABEL DA FONSECA electrónica digital para encontrar uma definição do poeta, criador de metáforas – processo de Investigador, ensaísta e académico, João Abel substituição em que um termo é substituído por da Fonseca privou desde a infância com seu outro, o que, no fundo, significa transposição. primo Mário-Henrique Leiria. É ele que, ainda Este conceito não pode ser dissociado, porém, criança, aparece na fotografia do casamento da imagem gráfica de um codificador e de do escritor, juntamente com os seus pais. um descodificador que se assemelham aos Neste texto Abel da Fonseca transmite um quadrados mágicos. O trabalho poético-visual testemunho pessoal baseado no enquadramento que Ana Hatherly nos legou acompanha a daquela personalidade num contexto familiar história das ideias, das religiões, da mística e das remontando ao século XIX, das ruas de Lisboa a artes, não só no sentido de uma erudição, mas terras de África. de uma praxis conhecedora da pansemiótica cabalística, da arte combinatória e seus aspectos “ESCRITORES E SALA DE CINEMA”, permutacionais, algo ao qual o conhecimento DE RAQUEL MORAIS aprofundado do universo musical da ensaísta acrescenta mais do que o óbvio. O texto-desenho O ensaio parte da descrição que Barthes faz na sua obra deve merecer uma aproximação da sala de cinema como lugar da hipnótica e hermenêutica que o tenha em conta como parte hipotética resolução de um desencontro entre integrante de um sistema sígnico a estudar de um sujeito e as partes de si que desconhece, modos múltiplos e também enquanto pulsão para analisar a imagem em movimento enquanto de um corpo em movimento entre os vários fundadora uma estética, modeladora de um modo elementos – sobretudo o ar (o sopro), que tem de trabalho ou simples elemento de inspiração. uma velocidade. Podemos lê-lo em Mapas da Imaginação e da Memória e, noutros momentos, apresenta o ciclo de cinema por si organizado como uma sequência de ondas sonoras. Deste no Centro Cultural de Cascais sob o título “O modo, ler o que não são letras senão em desvio, escritor na sala de cinema”, o qual convocou mas signos/ícones, torna-se numa dinâmica que tanto filmes que influenciaram o imaginário representa a passagem de uma estrutura a outra, dos escritores evocados, como filmes que nos que desliza suavemente, sem asperezas. “MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA: BREVES DADOS BIOGRÁFICOS. A IMPORTÂNCIA DO MEIO FAMILIAR”, A partir deste enquadramento Raquel Morais permitiram revisitar a sua obra, iluminando-a. Se podemos ver na figura do escritor um espectador particularmente propenso à acção, que age sobre aquilo que através do cinema lhe chega, essa relação pode tomar contornos muito diversos – a série de autores programados pretendeu precisamente dar conta dessa amplitude. ABSTRACTS

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180 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS “REVIVER O FUTURO EM MANDERLEY: ANA TERESA PEREIRA, ALFRED HITCHCOCK E DAPHNE DU MAURIER”, DE AMÂNDIO REIS Neste ensaio sobre o diálogo entre escrita e nós, nos encontros que vemos entre os outros cinema, Amândio Reis considera que o prefixo onde só afinal somos felizes (onde só afinal crucial do termo reescrita nunca remete em Ana amamos plenamente: nenhures amamos tão Teresa Pereira, para um gesto simplificado do perfeitamente como perante um ecrã de cinema), que nos estudos interartísticos contemporâneos para nos encontrarmos temos que nos apropriar se tem vindo a denominar “remediação”, pelo da nossa vida como um reencontro connosco, que se entenderia, neste caso, e num primeiro como estratégia para sarar uma separação e entendimento do fenómeno, a passagem à escrita uma perda que nos são indispensáveis para de enredos e personagens cinematográficos. Ele sermos aquilo que desejamos. É essencial, para representa, antes, uma transfiguração dos filmes entender a ligação profunda de Ruy Belo com o em causa, cujos resultados assumem contornos cinema como escola em que aprendemos a ver, por vezes quase irreconhecíveis, colocando-nos reconhecer a dinâmica poética e não narrativa perante textos derivativos que, ainda assim, são de concentração, selecção, condensação, que pouco correlacionáveis, ou relacionáveis apenas ele reconhece como dispositivo fundamental da de viés, com o original fílmico. A um nível mais linguagem cinematográfica. Este é um aspecto profundo deste processo, a volta que marca a evidenciado no encontro desencontrado entre reescrita de Ana Teresa Pereira figura-se também “Muriel” e “Muriel”, filme e poema. Não é a como uma resposta, ou, mais concretamente, história poderosa do amor infeliz de um par de como uma réplica a obras precedentes, na adolescentes-flores decepados pela cegueira expressão de um mecanismo criativo que, e os preconceitos dos adultos, nem o retrato claramente, toma o discurso literário e a forma genial de uma geração oprimida pelos tabus ficcional, em alternativa à crítica ou ao ensaio, sexuais, as convenções sociais e os imperativos como meio de comentário, isto é, como forma do sucesso e do desempenho, que interessa de reflectir sobre si mesmo e sobre essas obras primariamente a Belo, mas a capacidade do pensando com elas . “MURIEL, OU DA POESIA - O REENCONTRO COMO DESENCONTRO NECESSÁRIO – RUY BELO E O CINEMA”, DE TERESA BARTOLOMEI O ensaio aborda um filme - Muriel ou o tempo de um regresso , de Alain Resnais – e um poema - O ensaio debruça-se sobre o “Muriel”, de Ruy Belo - associados pelo mesmo realizador chileno Pablo Larraín, sobre a mulher título e pelo mesmo tópico – a inextricável mistura do amor, da memória, da culpa e da saudade. Se o encontro profundo com nós mesmos que procuramos no verdadeiro encontro com os outros, só o temos ao desencontrarmo-nos de filme de representar de forma meta-simbólica a peculiar função simbólica comum à palavra poética e à representação cinematográfica na sua expressão da experiência humana. “JACKIE IN THE KINGDOM OF CAMELOT”, DE MÁRIO AVELAR Jackie , o filme do ABSTRACTS

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181 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS que introduziu a ideia de glamour no quotidiano da Casa Branca, enquadrando-o no âmbito da mediação com a realidade proporcionada pela televisão. Partindo do diálogo que o filme realiza com o documentário White House Tour apresentado pela CBS no dia de S. Valentim de 1962, tendo como protagonista primeira-dama, o ensaio mostra como aquela personagem histórica soube recuperar toda uma tradição mítica da América, transpondo-a para a celebração do seu marido, o presidente assassinado que passa a integrar uma galeria de heróis que tem no presidente Lincoln um representante maior. A par de temas e mitos americanos como a Terra Prometida ou a Fronteira, são aqui analisados outros importados do Velho Mundo, como o de Camelot que percorre, como subtexto, toda a narrativa fílmica. ABSTRACTS

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182 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS ABSTRACTS “JOSÉ MANUEL TENGARRINHA AND THE NEWSPAPER CIVILIZATION IN: A NEW HISTORY OF THE PRESS IN PORTUGAL – FROM ITS ORIGINS TO 1865”, BY ANA PAULA MENINO AVELAR Seminal in the decoding and understanding of a Throughout this reading I also suggest that there long time of the “civilization of the newspaper”, is a deliberate intention in the composition of the is the work of José Tengarrinha on the History of the Press in Portugal . His study participates in education of Anna Hatherly, her knowledge one of the main current fields of investigation, of Christian mythology, Eastern thought and the one of the relationship between literature symbolism in general, the number in the and journalistic writing. It is important to take context of the Tisanas refers to what is partial into account his biographical journey, which and relative, incomplete and always unfinished, is closely linked to journalistic activity and which is repeated in uselessness, but that has historical studies. Still during his intermittent no end, although periodically interrupted. The university attendance as undergraduate student, black square emerges here as the center, the due to his political intervention, he already agglutinating element. The essay “ends” open, was interested in the 19th Century History, with a last Tisane which expresses Ana Hatherly’s which would be one of his main research topics attitude toward life, academia, “learned” minds, throughout his academic career. The work on disgust for the status quo, because the trend will deepening the theme and its investigative always be that of silencing, of normalization, synthesis culminated in the writing of his A New History of the Portuguese Press - From its Origins to 1865 , that came to light in 2013. There José order. Manuel Tengarrinha developed his previous work, delimiting right from the start in the “A. H.”, introduction the object he was revisiting. “A BRIEF JOURNEY THROUGH THE CITY OF WORDS”, BY MARIA DO ROSÁRIO MONTEIRO This essay focus on Tisanas , an emblematic form a staged concert. I soon realized that I was collection of Ana Hatherly’s literary production facing someone who in the various fields of her that kept on changing as a creation of her life, own artistic production showed how intrinsically as she herself stated. Because she conceives of linked those arts were - a multidimensional them as “itinerary of a lifetime”, Ana Hatherly artist, who implies music and painting in the kept on adding Tisanas without rewriting or modifying the previous ones, since this could be a betrayal of the conception that informs them: they are an “open work”. In order to delimit the object of this analysis, the current reflection is centered in some Tisanas from The City of Words , which gathered the first 222 Tisanas. thirteen geometric forms. Given the religious of promoting the most obedient or the most opportunistic. Nothing like laughter to disturb A TESTIMONY BY JOÃO MADUREIRA I first met Ana Hatherly in 2003, in the context of an order that had been commissioned by Culturgest. I was commissioned by António Pinto Ribeiro for a chamber orchestra piece to ABSTRACTS

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183 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS writing of a poem, as implies writing and speech incidence in the thematization of the relation in a drawing, not letting us inhabit one of these between writing and painting. The word is a fields, but forcing us to discover the space painted sign, and as a painting it questions the of their relationship. The second time I wrote senses, namely the vision, without this meaning about Ana Hatherly’s text was on the occasion the absence of thought or meaning. For this very of the 40th anniversary concert of Lisbon reason, Hatherly considers herself both a writer Contemporary Music Group in 2010. “Noche” and a painter. Besides, during her studies at the for mezzo-soprano and 8 instrumentalists was London Film School, Ana Hatherly undertook written about the poem “Night Song - I love you”. some film exercises. Among them, animation The third time I wrote music about Ana Hatherly films (sometimes described as abstract ones), was not actually about her texts, since it was a in which appear geometric figures, undergoing portrait essay, integrated in a cycle of studies successive metamorphoses of format and, in for piano titled “Literary Studies - Portraits” in some cases, of color. Accelerated sequentially 2012. Ana Hatherly’s legacy remains present in and the consequent illusion of motion of the an acute awareness of her time, both in relation cinema seem to interest her, since through them to the Baroque period she studied, as well as she can produce or enhance ways of seeing the to the mechanical and technological time she painted written signs. First and foremost, the film inhabited. “ANA HATHERLY AND WRITING IN CINEMA”, BY ELISABETE MARQUES Ana Hatherly’s work is intrinsically associated with the exploration of the visual dimension of Ana Hatherly uses the language of digital the written word. Firstly, it appears inserted in electronics in order to search, and hopefully find the movement PO.EX, in the decades of 60 and a definition of the poet, the creator of metaphors 70 of the 20th century, and later in a singular - a substitution process in which one term is space of creation, in which calligraphy, painting, replaced by another, what, in the end, means drawing, performance, among other artistic transposition. This concept cannot be dissociated forms converge. Multifaceted, Hatherly not from the graphic image of an encoder and a only knew how to reinvent the ways of writing, decoder that resemble the magic squares. The but also participated actively in the theoretical poetic-visual work that Ana Hatherly bequeathed foundation of the avant-garde movements that to us accompanies the History of ideas, religions, she integrated. To this end, she carried out mystics and the arts, not only in the sense genealogical and analytical researches on visual of erudition, but also in a praxis known to poetry and experimental poetry, as evidenced Kabbalistic pansemiotics, combinatorial art and in several published volumes. The author its permutational aspects, something to which tries to show the difference between writing the in-depth knowledge of the essayist’s musical as a process and as an end in itself, hence the universe adds more than the obvious. The text- device exhibits the interference of one sign over another. “ANAGREGORIANA”, BY ANA MARQUES GASTÃO ABSTRACTS

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184 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS drawing in her work demands a hermeneutical Cultural Center of Cascais under the title “The approach that takes it into account as an integral writer in the cinema”, which has gathered both part of a sign system to study in multiple ways films that influenced the imagery of the writers and also as a drive of a moving body between evoked, as films that allowed us to revisit his the various elements - especially air (the breath) work, illuminating it. If we can see in the figure , which has a speed. We can read it in Maps of Imagination and Memory and, at other times, as a prone to action, who acts on what through the sequence of sound waves. In this way, one aims cinema comes to him, this relation can take many to read not letters but signs / icons,. Reading different contours - the series of programmed eventually becomes a dynamic that represents authors precisely intended to account for this the passage from one structure to another, that amplitude. slides smoothly, without roughness. “MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA: A FEW BIOGRAPHICAL DATA. THE IMPORTANCE OF A FAMILY CONTEXT”, BY JOÃO ABEL DA FONSECA Researcher, essayist and academic, João Abel and cinema, Amândio Reis considers that the da Fonseca got along with his cousin Mário- Henrique Leiria since his childhood. It is he who, to Portuguyese author Ana Teresa Pereira, for as a child, appears in the wedding photograph a simplified gesture of what in contemporary of the writer, along with his parents. In this text interarts studies has come to be called Abel da Fonseca conveys a personal testimony “remediation”, reason why it would be understood, based on the framing of that personality in a in this case, and in a first understanding of the family context dating back to the 19th century, phenomenon, the passage to the writing of from the streets of Lisbon to the lands of Africa. “WRITERS AND THE MOVIE THEATRE”, BY RAQUEL MORAIS The takes Roland Barthes’s description of however, are still uncorrelated or relatable only the cinema as a hypnotic and hypothetical with the original film. At a deeper level of this resolution of a mismatch between a subject and process, the return that marks the rewriting of the unknown parts of himself, in order to analyze Ana Teresa Pereira is also seen as a response, the moving image as founder of an aesthetic, or, more concretely, as a reply to previous works, modeling of a way of working or simple element in the expression of a creative mechanism that of inspiration. From this framework, Raquel clearly takes the literary discourse and fictional Morais presents the film series organized by the form as an alternative to criticism or essay, of the writer a spectator who is particularly “RELIVING THE FUTURE IN MANDERLEY: ANA TERESA PEREIRA, ALFRED HITCHCOCK AND DAPHNE DU MAURIER”, BY AMÂNDIO REIS In this essay on the dialogue between writing crucial prefix of the term rewriting never refers plots and cinematographic personages. Rather, it represents a transfiguration of the films in question, the results of which take on contours that are sometimes almost unrecognizable, putting us in the face of derivative texts which, ABSTRACTS

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185 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS as a means of commenting, that is, as a way of cinematographic representation in its expression reflecting on oneself and on those works by of human experience. thinking about them. “MURIEL, OR THE TIME OF POETRY - THE REENCOUNTER AS A NECESSARY MISMATCH – RUY BELO AND CINEMA”, BY TERESA BARTOLOMEI The essay approaches a film – Alain Resnais’ of the White House, framing it in the scope Muriel or the time of a return - and a poem – Ruy of the mediation with the reality provided by Belo’s “Muriel” – both connected by title and television. Starting from the dialogue that the topic - the inextricable mixture of love, memory, film realizes with the documentary guilt and homesickness. If the deep encounter with ourselves that we seek in the true encounter Valentine of 1962, with the first lady as its main with others, only is achieved when we disengage protagonist, the essay shows how that historical ourselves from ourselves, in the encounters we personage knew to recover a whole mythical witness among others where after all only we tradition of America, to the celebration of her are happy, in order to meet ourselves we have husband, the murdered president who joins a to appropriate our lives as a reunion with us, as gallery of heroes that has a greater representative a strategy to heal a separation and a loss that in President Lincoln. Alongside American we are indispensable to be what we want. It is themes and myths such as the Promised Land essential, in order to understand Ruy Belo’s deep or the Frontier, the essay also ponders on other connection with cinema as a school in which we myths also imported from the Old World, such learn to see, to recognize the poetic and non- narrative dynamics of concentration, selection, narrative as a subtext. and condensation that he recognizes as the fundamental device of cinematic language. This is an aspect evidenced in the meeting between “Muriel” and “Muriel”, film and poem. It is not the powerful story of the unhappy love of a pair of teens-blossoms cut short by the blindness and prejudices of adults, nor the genial portrayal of a generation oppressed by sexual taboos, social conventions, and the imperatives of success and performance that matter primarily to Belo, but the capacity of the film to represent in a meta-symbolic form the peculiar symbolic function common to the poetic word and the ABSTRACTS “JACKIE IN THE KINGDOM OF CAMELOT”, BY MÁRIO AVELAR The essay focuses on Jackie , the film by Chilean director Pablo Larraín, about the woman who introduced the idea of glamor in the daily life White House Tour presented / displayed by CBS in the day of as Camelot’s, which runs through the entire film

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186 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS Nª1 /2019 REVISTA CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS

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187 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS colaboram neste primeiro numero AMÂNDIO REIS ANA MARQUES GASTÃO ANA PAULA MENINO AVELAR ELISABETE MARQUES HILDA YASSERI HOWARD WOLF JOÃO ABEL DA FONSECA JOÃO MADUREIRA MARIA DO ROSÁRIO MONTEIRO MÁRIO AVELAR MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA RAQUEL MORAIS TED WITEK TERESA BARTOLOMEI

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188 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS COLABORARAM NESTE NÚMERO THIS NUMBER CONTRIBUTORS Amândio Reis - Doutorando em Literatura Compa- rada com um projecto, apoiado pela FCT, em torno da narrativa breve no fim do século XIX. É investi- gador no Centro de Estudos Comparatistas, onde posições sobre o fotógrafo norte-americano Ted trabalha nas áreas da literatura comparada e das Witek, nomeadamente a que esteve patente ao pú- relações entre literatura e cinema. Ana Marques Gastão - Coordena, desde 2009, a East West. revista Colóquio-Letras. Autora, entre outras obras, Howard R. Wolf – Licenciou-se na Horace Mann de As Palavras Fracturadas (ensaios, Theya, 2013), School, Amherst College, obteve o grau de Mes- L de Lisboa (Assírio & Alvim, 2015), e O Olho e a tre na Universidade de Columbia, e de doutor na Mão com Sérgio Nazar David (7Letras, 2018). Edi- ção e prefácio de Esperança e Desejo – Aspectos Universidade de Buffalo. É autor de livros, entre os do Pensamento Utópico Barroco, de Ana Hatherly quais Far-Away Places (ensaios de viagens) e Bro- (Theya, 2016). Consultora/Assessora da Ana Ha- therly Chair in Portuguese Studies (Instituto of Eu- ropean Studies e Instituto Camões). Ana Paula Menino Avelar – Professora Associada pós-graduado em História dos Descobrimentos e com Agregação em História Moderna. É membro da Expansão Portuguesa, pela FLUL. Sócio corres- da Academia Portuguesa da História, da Socieda- de de Geografia de Lisboa e da Academia de Ma- rinha, de cuja classe de História Marítima integra e membro correspondente estrangeiro da Acade- a direcção. Autora de inúmeros estudos sobre His- tória de Expansão, como Fernão Lopes de Casta- nheda – Cronista do governo de Nuno da Cunha? ção de História da SGL, Presidente do Instituto D. (Cosmos, 1997) ou Figurações da alteridade na Álvaro de Bragança, da SHIP, e Presidente do Con- cronística da Expansão (Universidade Aberta, selho Superior do ICEA. Investigador associado 2003), dirige a colecção Itinerários Portugueses, do ‘Projecto DIAITA, do CECH da Universidade de da Imprensa Nacional, para a qual prepara tam- bém a edição crítica da obra de Fernão Lopes de fruto de comunicações apresentadas em congres- Castanheda. Elisabete Marques - Doutorada pela Faculdade de Expansão Portuguesa, coordenado por Francisco Letras da Universidade de Lisboa, com uma disser- tação sobre Maurice Blanchot e Samuel Beckett. pelo Almirante CEMA, com a Medalha Naval de Actualmente, é investigadora no Instituto de Lite- ratura Comparada Margarida Losa (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), onde está a de- senvolver um projecto de pós-doutoramento que incide sobre as relações entre Literatura e Cinema. Hilda Yasseri – Designer. Curadora de várias ex- blico no Centro Cultural de Cascais (Fundação D. Luís I), sob a designação Ted Witek – North South, Universidade de Michigan. É professor emérito da adway Serenade (romance). Define-se a si próprio como um “escritor na universidade.” João Abel da Fonseca - Licenciado em História e pondente da ACL, académico correspondente da APH, membro emérito da Academia de Marinha mia Balear de la Historia e da Academia Uruguaya de Historia Marítima y Fluvial. Presidente da Sec- Coimbra. Tem publicados cerca de 120 estudos, sos ou em sessões nas instituições a que pertence. Colaborou com várias entradas no Dicionário da Contente Domingues. Foi condecorado, em 2016, ‘Vasco da Gama’.

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189 CASCAIS INTERARTES CROSSROAD OF THE ARTS João Madureira - Compositor e professor de com- posição na ESML, doutorado em Ciências Musicais tem vindo a coordenar a publicação da sua obra Históricas e investigador do CESEM (FCSH-UNL). completa. Formou-se em composição com Christopher Bo- chmann e António Pinho Vargas (Escola Superior Raquel Morais - Estudou literatura na Universida- de Música de Lisboa), tendo concluído o mestra- do em composição na Escola Superior de Música grau de Mestre (2016), e cinema em Birkbeck Col- de Colónia, com York Höller. Foi também aluno de lege, University of London, onde obteve o grau de Franco Donatoni e de Ivan Fedele. As suas obras Mestre em 2018. Trabalha no Institute of Contem- têm sido tocadas em Inglaterra, Alemanha, Itália, porary Arts, em Londres, e colabora com o Essay França, Croácia, Espanha e Portugal. Maria do Rosário Monteiro - Investigadora douto- rada em Ciências Literárias/Literatura Comparada Ted Witek – Artista norte-americano, licenciado pela Universidade NOVA de Lisboa. A sua publica- ção mais recente é o ensaio “Ursula K. Le Guin: Li- terature and Otherness”. Faces de Eva (40), 61-76. Mário Avelar – Director da Cátedra Cascais Inte- rartes e da respectiva revista. Professor catedrá- tico em Estudos Ingleses e Americanos. As suas vembro de 2018 e Fevereiro de 2019. obras mais recentes são, no plano ensaístico, Po- esia e Artes Visuais – Confessionalismo e écfrase Teresa Bartolomei – Licenciada pela Faculdade de (Imprensa Nacional, 2018), a sua poesia reunida - Letras da Universidade La Sapienza, Roma (1983). Coreografando melodias no rumor das imagens Foi investigadora no Instituto Filosófico da Univer- (Imprensa Nacional, 2018), e a tradução de poe- sia e prosa escolhida de Gerard Manley Hopkins professor Karl-Otto Apel (1985-1989). Doutorou- (Paulinas, 2018). Mário-Henrique Leiria – É uma das personalida- des que constituem a razão de ser primeira da Cá- tedra Cascais Interartes. A sua inclusão na Antolo- gia Surrealista do Cadáver Esquisito, organizada e portuguesas. Posfaciou, em 2018, Talvez escute por Mário Cesariny em 1961 contribuiu, em mui- to, para que o seu nome ficasse associado àquele fio à fé cristã, de Karl-Josef Kuschel. É actualmente movimento, ao qual estivera já ligado entre 1949 e professora auxiliar convidada na Universidade Ca- 1952. O seu insólito sentido de humor terá expres- são mais relevante em Contos do Gin-Tonic, de 1973, e em Novos Contos do Gin-Tonic, de 1974. Tania Martuscelli, da Universidade do Colorado, de de Lisboa, onde se licenciou (2011) e obteve o Film Festival. As suas áreas de interesse incluem as relações entre cinema e escrita e o filme-ensaio. pelo Quinnipiac College, no Connecticut, mestre pela Universidade de Yale e pelo Henley College, de Londres, doutorou-se na Universidade de Co- lumbia. A sua exposição de fotografia intitulada Ted Witek – North South, East West esteve patente ao público no Centro Cultural de Cascais entre No- sidade de Frankfurt am Main, sob orientação do -se em 2016 no Programa de Doutoramento da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem publicado ensaios sobre questões de ética, hermenêutica e literatura, e textos de ficção na Alemanha e em várias revistas italianas, francesas Deus alguns poetas – A literatura enquanto desa- tólica Portuguesa.

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